Opinião

Tutti fratelli?

24 out 2020 11:12

As diferenças enriquecem se houver diálogo e não fechamento em grupos de interesse.

Meu Caro Zé,

Quando o surto pandémico obrigou a um confinamento praticamente mundial, criouse a esperança, fundada também em gestos crescentes de solidariedade a todos os níveis, ao mesmo tempo que se tornava crescentemente evidente que o modo de viver em que a pandemia nos encontrou não era sustentável, nem sequer desejável, pelas injustiças e desigualdades sociais que lhe subjaziam.

E, agora, quando olhamos para o que na quase trégua que se seguiu entre a vivência desse surto e a situação atual, esse diagnóstico prevalece, robusteceu-se ou enevoou-se?

Quem acompanha, diariamente, o que se passa a nível mundial e, do mesmo passo, nas suas “terras”, não pode deixar de notar, independentemente de continuarem e até, em certos casos, aumentarem crescentemente heróis solidários, que há uma névoa crescente sobre a necessidade dos caminhos de mudança, com grande predominância do efeito do poder dos mesmos de sempre, defendendo os seus privilégios, designadamente no campo da finança e na especulação que quase sempre lhe está subjacente.

Mas vamos desistir?

Como resposta emerge a nova Encíclica do Papa Francisco, “Fratelli Tutti”, que incita ao fortalecimento da fraternidade universal, superando egoísmos pessoais, familiares, locais, nacionais e de grupos específicos. E fá-lo com um realismo e uma acutilância que não podem deixar de ser relevados.

Aponta o que de mal ou de errado atravessa o mundo de hoje, mas não deixa de propor a esperança, acreditando em novos caminhos de encontro, pois não há fraternidade onde não há encontro.

Não consigo, nem quero tentar, nesta simples missiva, abarcar todo o pensamento do Papa, mas, se me é possível escolher algo para deixar em aberto, escolho essa questão do encontro.

E isso leva-me ao modo como hoje nos “encontramos” uns com os outros, modo esse que a pandemia agravou. E cito a Encíclica: “A conexão digital não basta para lançar pontes, não é capaz de unir a humanidade…

O funcionamento das plataformas acaba frequentemente por favorecer o encontro entre pessoas com as mesmas ideias, dificultando o encontro entre as diferenças.”

Esta observação é crucial, pois o Papa não evita o conflito que diz existir sempre quando a realidade (e, como refere noutro ponto, “a sabedoria pressupõe o encontro com a realidade”) é enfrentada.

As diferenças enriquecem se houver diálogo e não fechamento em grupos de interesse.

É interessantíssima a distinção que faz entre “sócio” (os do grupo) e “próximo”, entre “eu” e os “outros” (às vezes até pelo medo que se instala na sociedade, com várias raízes).

E tem uma frase terrível: “A agressividade social (na conexão digital) encontra um espaço de ampliação… e um desregramento tal que se existisse no contacto pessoal acabaríamos todos por nos destruir entre nós.”

“Fratelli Tutti”? Há novos caminhos de encontro e a tecnologia ajuda se a soubermos usar. Falaremos disto a próxima vez.

Até sempre,

Texto escrito segundo as regras do Acordo Ortográfico de 1990