Opinião
Solistas
Estamos todos a falar sozinhos, solistas numa casa sem pão, nem razão e, quem sabe, sem futuro que se afine
Uma pessoa que muito estimo disse-me que o problema eram os chico-espertos.
Fiquei um bocadinho desiludido com ela, confesso. Eu, que tanta esperança tinha na nacional humanidade.
Depois de muito reflectir, conclui que ela estava certa.
Que esse chico-espertismo acompanha todas as nossas respirações e suas pausas, uma espécie de cegueira que nos levará, até onde, não se sabe, mas não é o caminho que importa?
Abrem-se discotecas, mas não se pode dançar. Lá anda a PSP a confiscar colunas Bluetooth no Bairro Alto.
Temos espectáculos ao ar livre, mas tudo sentadinho de máscara, porque ao fim e ao cabo os tais concertos-testes, que se fizeram aqui há uns valentes meses, são outro dos tabus da DGS para a cultura.
Somos vacinados, mas afinal, muitos, apoiados em teorias tão válidas quanto a planura do planeta, não as querem porque a indústria farmacêutica é híper-capitalista, ou porque o certificado digital é um abuso, isto para quem já mostrou o rabo, as mamas, a pila, o número de cartão de crédito, os filhos, a casa, os cães e os gatos na Internet.
Se algum músico se atreve, quando perguntado, a dizer que gostaria de ter condições para voltar a trabalhar, lá vêm as ordens de que devíamos era arranjar um trabalho a sério, ir para as obras dar serventia, pegar no pesado, fazer pão ou bolos.
Isto quando, aposto, qualquer chico-esperto que assim o afirme não sabe que muitos dos músicos já passaram tijolo na construção civil, distribuíram encomendas postais, pintaram casas, ou que ainda o fazem, tudo em nome de algo que não se explica a quem “tudo sabe”.
Aliás, quem nos manda arranjar trabalho a sério não aguentaria nem um dia na estrada, quanto mais vários concertos seguidos, viagens sem fim de avião, saudades da família, levantar cedo, tantas vezes sem dormir, a entreter as férias dos ingratos num país que regressa à obscuridade medieval porque, afinal, a minha amiga tinha razão: estamos todos a falar sozinhos, solistas numa casa sem pão, nem razão e, quem sabe, sem futuro que se afine.