Opinião

Saúde ou Fome?

5 jun 2020 10:08

Então, serão todos “maus” da mesma forma os que se desconfinam, sem regras, na praia ou nas “pândegas” noturnas e os que lutam pela vida?

Meu Caro Zé,

Esta pandemia que a todos atormenta e que em muito poderá afetar, psicologicamente, os mais jovens, é alvo de constantes posições contraditórias quer políticas, quer científicas.E se as primeiras são perturbadoras, não serão tanto como as científicas. É que as primeiras já são, em geral, esperadas, mas as últimas, essas criam maior insegurança a todos, porque inesperadas.

Como invocar o conhecimento científico se as “conclusões”(que, vendo bem, muitas delas não são mais que hipóteses que acabam por ser infirmadas) divergem durante o dia e mudam durante a semana?

Mas, meu Caro Zé, se eu tivesse que escolher a maior controvérsia, não teria dúvida em escolher o“desconfinamento”. E a raiz da controvérsia está no tremendamente difícil equilíbrio entre “pôr a economia a funcionar” e “preservar a saúde pública”.

Nos últimos dias fomos “bombardeados” por notícias de“maus comportamentos” de poucos, mas sempre localizados geograficamente e, também, social ou etariamente.

Tentando discernir o conjunto de notícias, vieram-me, de imediato, à mente, impressionantes imagens: uma de um brasileiro, habitante de favela, que afirmava “preferir morrer de Covid do que morrer à fome”, outro, de um outro país da América Latina, que explicava que tinha de sair para trabalhar para poder dar de comer à família.

 

Susana Peralta, no Público de 20-05-2020 escreve: “Isto de aguentar o confinamento depende muito da qualidade do sofá, da velocidade da internet e da variedade que há no frigorífico.”

Tendo razão, escapam-lhe os tais da “pândega”, ou da “praia”, que têm bons sofás, boa internet e frigorífico cheio.

Mas, tanto quanto as notícias o mostram (e isso não é garantia da real situação), quem é “posto em sentido” pelas autoridades são os outros.

Susana Peralta, no fim do seu artigo acrescenta: “A mim, parece-me que é preciso pensar que sociedade é esta que, perante pessoas que podem ficar com fome durante mais de um ano se contenta com oferecer uns pacotes de arroz para as campanhas do Banco Alimentar”.

Sem prejuízo de estar de acordo que “é preciso pensar que sociedade é esta”, é mais preciso ainda pensar como mudar esta sociedade, não esquecendo, entretanto, que há muita gente e organizações que, sustentadamente, procuram a mudança, indo bem para além do “pacote de arroz”.

Já há mais de 100 anos (1915) W. Sommerset Maugham, em Servidão Humana, escrevia: “Philip descobriu que a maior tragédia da vida daquela gente não era a separação nem a morte, coisas naturais cuja dor podia ser acalmada pelas lágrimas, mas a perda de emprego”.

Pois é!

É preciso “ensinar a pescar” (saúde, educação e condições de emprego), mas, para isso, há que dar força para segurar a cana (alimentar os que têm fome).

É esse o desafio que não podemos perder.

Até sempre,

Texto escrito segundo as regras do Acordo Ortográfico de 1990