Opinião
Proximidades
Reconheço aqui um certo saudosismo, meu, de um Portugal em que nos conhecíamos e cuidávamos
Sr. Amílcar. Sim, apesar do seu trabalho ser classificado como um dos menos honrosos na escala das actividades humanas mais que que necessárias, o Sr. Amílcar, como o ouvi insistentemente ser tratado, é varredor de rua. Nas Ruas de Gaia.
Acontece-me ter de viajar e calcorrear algumas das ruas dos chamados centros históricos das nossas cidades. O que me tem permitido coleccionar alguns quadros e cenas bem vivas das nossas gentes e as suas interacções.
A que aqui se conta, tem o Sr. Amílcar como protagonista. Das várias vezes que tive de voltar ao carro estacionado, lá estava o Sr. Amílcar. Enquanto tentava varrer, a conversar com a Sra. Ermelinda, a perguntar ao Sr. José Alves, acompanhado do seu andarilho, se já lhe tinham entregado os medicamentos, a perguntar à D. Amélia se o neto sempre tinha entrado em Arquitectura.
E ainda, a dizer o Sr. Vítor que não via o Sr. Júlio a sair de casa para ir beber o seu cimbalino. Estaria de novo acamado? Mas a filha não se tem visto por aqui. E ainda a dizer à D. Maria dos Anjos que estivesse descansada que daqui a pouco, no intervalo da bucha, iria buscar o seu saco das compras à Joana d’Esquina e lho entregaria. E todas estas conversas começavam com um olá, ou acabavam com até mais logo, Sr. Amílcar!
Reconheço aqui um certo saudosismo, meu, de um Portugal em que nos conhecíamos e cuidávamos. E nada tem a ver com os chegados migrantes. No sítio em que vivo, bem longe de Gaia, têm sido os potenciadores de proximidades maiores e de iniciativas de reconhecimento comum.
Sublinha-se, esse cuidado só possível a quem encara a vida muito para além da sua profissão e encara a existência como missão maior. Atenta a quem está e a quem passa. Capaz de se substituir a tantos organismos sociais que ficarão sempre aquém.
Talvez os amílcares estejam em vias de extinção. Mas o respeito que lhes devemos e a missão que os assiste, no caso, é bem maior do que o simples varrer a rua. E, a sua dignidade, muito maior que o simples trabalho com a vassoura e carro “sem cilindrada” lhes permite.
Por isso, em época de eleições aqui se afirma este acreditar numa humanidade que ousa fazer do cuidar e do promover as pessoas como a primeira das tarefas.
Gostei muito de si Sr. Amílcar! Ainda mais, quando não fui capaz de não parar e de lhe dizer “Sr. Amílcar você parece o presidente da junta aqui da rua!”. Ao que ele me diz, “Há 32 anos que ando a varrer estas ruas. Espero continuar a cuidar destas pessoas!”.
Diria que pelo modo e à vontade como falou, não deverá ter passado da 3ª classe… antiga. Mas aprendeu o essencial.
Cuidemo-nos!