Opinião

Portugal no seu pior

3 mar 2016 00:00

A história até tem contornos de anedota, não fosse tão triste e elucidadora de como foi possível as cidades portuguesas incharem de betão sem quaisquer critérios ou regras.

Em Portugal o crime continua, vezes de mais, a compensar. O caso da urbanização Vale da Cabrita, em Leiria, é apenas um exemplo disso mesmo, com o prevaricador, ajudado pela inépcia administrativa das nossas instituições, que se seguiu a uma decisão autárquica de contornos legais mais que duvidosos, a ser o único beneficiado num processo que implica várias dezenas de pessoas.

A história até tem contornos de anedota, não fosse tão triste e elucidadora de como foi possível as cidades portuguesas incharem de betão sem quaisquer critérios ou regras. De forma sucinta, tudo começou quando o dono de uns lotes de terreno, com vista privilegiada sobre a cidade, decidiu construir além do que estava definido no alvará do loteamento, aprovado em 1988.

Em 1995, com os prédios construídos e a maioria dos apartamentos vendidos, a autarquia, pela mão de Lemos Proença, à data o presidente da Câmara, aprovou uma alteração ao alvará do loteamento para regularizar a ilegalidade cometida pelo construtor. No entanto, para fazer o favor a um, acabou por penalizar os donos dos lotes vizinhos, que viram a área de construção permitida nos seus terrenos diminuir para compensar o 'chico espertismo' de quem construiu acima do que era permitido.

Naturalmente, vendo os seus lotes desvalorizarem administrativamente com a diminuição do índice de construção, um dos dois proprietários dos lotes vizinhos recorreu ao tribunal, que, em 1999, anulou as alterações inscritas no novo alvará e, em 2005, mandou demolir o que foi construido indevidamente. Habitações já vendidas e habitadas...

Apesar da decisão do tribunal, tudo continua na mesma. Os donos dos lotes vizinhos, obrigados a pagar milhares de euros de IMI por ano, nada podem fazer nos seus terrenos enquanto não for cumprida a decisão do tribunal e reposto o alvará inicial. Os moradores vivem na incerteza, em habitações mandadas demolir pelo tribunal e condicionados em eventuais decisões de venda. A Câmara, de recurso em recurso, vê-se confrontada com um processo herdado, de difícil resolução, mas que terá que ter um fim.

Há ainda a própria cidade, que é obrigada a viver à sombra daquelas torres de betão que deveriam existir com uma volumetria bastante mais discreta e menos agressiva para a paisagem. Sobra o empreiteiro que construiu e vendeu sem qualquer respeito pela lei. Esse, vai beneficiando do arrastar do processo com o conforto de ter do seu lado o dinheiro que lucrou indevidamente.

O filme, com características de novela, parece estar longe do fim, apesar de ser um processo que se desenrola há quase três décadas. Não é mais do que Portugal no seu pior, infelizmente repetido inúmeras vezes de Norte a Sul do País, com prejuízo de muitos e garantindo os interesses de alguns que vão actuando como se não existissem regras nem leis.

Normalmente com a complacência de instituições demasiado burocráticas para agir em timings aceitáveis, mas também de responsáveis políticos que, por alguma razão, fecham os olhos como se nada fosse.