Opinião
Poema judicial
Estacionaram carrinhas e saíram de lá polícias de capacete escudo e bastão a correr dando bastonadas literalmente a toda a gente
Depois do assassinato de um homem pela polícia na Capital do Império e do sequente discurso de alguma sensatez a par do cortejo de virgens lamentando-se debaixo das respetivas laranjeiras ou do exercício pornográfico público da direita fascistóide continuo a ter na cabeça a imagem de um dia soalheiro e tranquilo em que estando eu a trabalhar na Escola de Apelação resolvemos ir quase todos visitar a Quinta da Fonte que é do outro lado da estrada.
Má ideia porque nem há dois minutos estávamos no bairro quando a polícia fez uma incursão que algum objetivo havia de ter. Foi assim, estacionaram carrinhas e saíram de lá polícias de capacete escudo e bastão a correr dando bastonadas literalmente a toda a gente. Ficámos enfiados na entrada de um prédio. Não foi notícia.
E não foi notícia em 2021, por exemplo, a prisão de um rapaz que estava a colar um poema na parede que o polícia considerou injurioso para a instituição e portanto passível de ser considerado crime.
Como se explicou pacientemente à PSP fazia tudo parte de um projeto de uma exposição da poetisa e ativista dos direitos da mulher, particularmente da mulher de origem africana, a portuguesa de ascendência guineense, Gisela Casimiro.
O Ministério Público lá chegou à conclusão que o rapaz não era culpado de coisa nenhuma e que não tinha menosprezado a instituição nem intencionalmente denegrido a imagem da polícia e arquivou rapidamente o processo. Sobre a detenção ilegal do rapaz não disse nada. Assim como nada disse sobre a violação da Constituição e das leis sobre a nossa liberdade de expressão.
O poema que se chama Quando eu for grande, é assim:
Quando eu for grande quero ser polícia para bater nos pais de outros meninos em frente aos outros meninos.
O meu pai sempre me disse:
cuidado a quem dás bastonadas.
Nunca dês bastonadas a um preto
se não vão achar que és racista.
Se deres bastonadas a um branco
estarás apenas a ser polícia.
Ainda bem que não somos pretos.
Imaginem se fossemos pretos. Já não podia ser polícia.
Texto escrito segundo as regras do Acordo Ortográfico de 1990