Opinião
Pequenas injustiças
É assim que se descobrem vocações. É claro que alguns não precisam do vírus para nada
Suponho que esta espécie de suspensão do mundo em que me encontro mergulhado por culpa da Covid e das consequentes imposições protocolares tem a sua graça, se fizermos o esforço de olhar nessa perspectiva.
Eu tinha uma semana cheia de eventos e, bruscamente, deixei de ter.
É interessante porque milhões de pessoas tiveram experiências semelhantes e eu ainda não a tinha. Agora já tenho.
Deixando de lado, com todo o respeito, o facto do vírus provocar reacções não uniformes e de diferentes níveis de intensidade, aquilo que me interessa é este corte com a vida.
Dirão que é mais daquilo que tivemos há pouco tempo e por períodos prolongados mas, não me parece que seja.
Há com certeza uma diferença significativa entre a paragem total de todo o tipo de comportamentos de socialização, trabalho e lazer, e estes actos isolados que nos cortam o acesso a uma vida que decorre lá fora, sem paragem.
Este inesperado voltar para dentro, que no meu caso por razões várias em nada me custa, retirou-me a possibilidade de cumprir um calendário auto construído, todo ele virado para fora.
Provavelmente, assim que me tirarem este aquário da cabeça verei tudo com outro olhos mas, de momento, ter olhos e conseguir ver já é deveras tranquilizador.
Além do resto tinha prometido a mim mesmo por fortes razões não faltar à inauguração, no Museu de Leiria, da exposição Jorge Estrela - esboço de uma biografia, na segunda-feira, e à estreia da peça Bú ou a Pragmática do Sonho, que o Te-Ato levou na quarta-feira à cena no âmbito do Festival de Teatro Sinopse.
A exposição lá continua e a peça hei-de vê-la na próxima oportunidade.
E não pude estar no Leiria há 100 anos, depois de ter passado muitas horas a dar o meu contributo para que tudo corresse o melhor possível.
Não é nada de muito interessante, mas não posso deixar de acrescentar a todos os sintomas da virose o efeito Calimero, um pinto que andava meio dentro de um ovo e se queixava constantemente da enorme injustiça com que tudo e todos o tratavam.
É assim que se descobrem vocações.
É claro que alguns não precisam do vírus para nada.