Opinião
Pensar ao correr da pena pode não levar a muito, mas pensar já é sempre alguma coisa
Somos muito mais do que os nossos dias são
Após um curto espaço de tempo em que me aconteceram duas belíssimas e intensas experiências no contacto com a arte, e uma observação, muito próxima, do poder contido na expressão artística mesmo que (ou sobretudo se!) levada a cabo por amadores, nunca me pareceu tão claro que o mais subtil de se ser humano surja nesses raros momentos, residindo numa total abstracção do mundo que nos rodeia, e num lento, silencioso e poderoso mergulho dentro de nós.
É um assombro, um deslumbramento fundador da emoção transformadora esse que nos coloca perante o que sentimos e, portanto, perante o que somos, sem filtros e “sem rede”, e nos deixa entregues a um eu íntimo, secreto, e impossível de ser relatado.
E nesse momento em que nos sabemos únicos no sentir, porque únicos no ser exactamente como somos, sabemos quem somos. Mesmo não o sabendo explicar.
Por essa razão se torna impossível o comentário, a opinião ou a reflexão em voz alta sempre que acontece um contacto com a arte capaz de nos revelar a nós mesmos; dá-se a estranheza da impossibilidade de traduzir, de não saber o que dizer, de não conseguir explicar essa intensa viagem que nos faz precisar de respirar fundo para podermos voltar, mas que, paradoxalmente, se carrega de sentido.
A experiência artística permite uma poderosa consciência de nós, inquirindo-nos sobre quem somos e como o queremos ser, algo a que nunca poderemos responder com clareza já que seremos sempre, simultaneamente, quem éramos um momento antes e também esse outro eu acabado de encontrar em mais um espanto gerador de consciência.
Com os pés de volta ao chão e libertada a respiração curta com que se mantém o corpo contido, focado, e disponível para albergar todo o ar que da emoção sai para o peito, logo a seguir se torna presente, uma vez mais, a quantidade de desnecessário que povoa a nossa vida, e nos espantamos, outra vez, com a forma como sempre nos esquecemos de algo que tão claramente vemos agora: de que somos muito mais do que os nossos dias são.
E decidimos ali mesmo, tão elevados nos sentimos de um quotidiano previsível, dar um espaço aberto à criação, à fruição, à emoção e ao pensamento que elas provocam, e dar à vida esse ser tão especial que existe em nós.
Mas, na verdade, a lenta transformação provocada pela criação, pela fruição artística, e pela relação estética, carece desse confronto com todas as minudências da vida quotidiana, sejam elas necessárias ou supérfluas.
Precisamos de ter consciência da oposição entre o que profundamente somos e a existência que praticamos, entre a nossa capacidade criativa e a nossa chatíssima previsibilidade, entre a repetição desinteressante e a epifania.
Precisamos muito de precisar de ser livres, e únicos, e criadores. Precisamos muito de querer ser os belíssimos seres que, na realidade, somos.