Opinião

Os resultados do PISA e o discurso mediático

14 dez 2023 19:44

Estamos a par dos países que nos rodeiam e que, muito antes de nós, tinham níveis de escolaridade muito mais elevados. Além disso, os dados revelam que, afinal, em Portugal as escolas públicas estão ao nível das escolas privadas

Ouvi num destes dias, num canal de televisão, a jornalista Maria João Avillez referir-se à deliquescência das instituições em Portugal, manifestando preocupação. Falava ela a propósito do chamado caso das gémeas e do presidente da República. Pergunto-me, no entanto, se tal deliquescência tem uma existência factual e comprovada objetivamente ou se existe sobretudo no plano do discurso opinativo predominante nos media.

Na verdade, neste plano mediático o que tem prevalecido ultimamente são os chamados casos, os dos ministros X e Y, do Presidente, mais este e aquele, casos que enchem horas e horas de conversa, comentário, opinião. É certo que isso é bom para as audiências, que são necessárias para a sobrevivência dos vários canais. Também é certo que isso é prova provada da liberdade de informação e de opinião. É ainda certo que é muito velha a história de que o que dá notícia é a exceção, o homem que morde o cão e não o contrário. E é finalmente certo que muita política (ou deveria dizer politiquice?) se faz com os ditos casos. A verdade é que, no universo mediático, a visão do país é de fugir... Aí, não são as instituições que deliquescem, é o país inteiro! Ora eu vivo neste país e resisto a deixar-me naufragar na vaga da deliquescência anunciada. Procuro manter uma distância de segurança perante as múltiplas conversas arrebatadamente indignadas que vou ouvindo. Há problemas e coisas que vão mal? Certamente. Mas uma coisa é a crítica racional e tendencialmente objetiva e outra é um vazar de fel, um permanente bota-abaixo repleto de tiradas melodramáticas, ou engraçadinhas, ou soezes, de efeito garantido. A visão negativista e o discurso sempre condenatório acabam por ter um efeito destruidor, que varre na mesma onda o mau e o bom que devia ser salvo.

Lembro, a propósito disto, uma apreciação que Eça de Queirós põe na boca da sua personagem Craft, o estrangeirado amigo de Carlos da Maia. Assistindo à discussão sobre literatura entre duas outras figuras, estas genuinamente portuguesas, discussão que rapidamente passara do plano das ideias para o plano pessoal, diz ele que “já presenciara, mais vezes, duas literaturas rivais engalfinhando-se, rolando no chão, num latir de injúrias: a torpeza do Alencar sobre a irmã do outro fazia parte dos costumes de crítica em Portugal”.

Dir-me-ão que já lá vão mais de cem anos sobre o tempo de Eça de Queirós; mas há um pouco menos tempo, Charles Boxer, o inglês que afincadamente estudou e escreveu sobre o que chamou o império marítimo português, referia, a propósito das inúmeras queixas constantes na correspondência oficial e particular trocada nos séculos XVI e XVII entre responsáveis ultramarinos e metropolitanos, “o tradicional defeito português da murmuração”.

Olhando à minha volta, aqui, longe do universo mediático, pergunto-me se aí não se continua a sofrer do mesmo defeito... Não sofrerá, hoje ainda, o comentário sobre questões políticas dos “costumes da crítica em Portugal” referidos por Eça? Não é ainda verdade que se passa rapidamente da crítica séria para uma espécie de má-língua, às vezes ligeira, outras vezes arrasadora, insidiosa e sem fundamento?

O problema é que os jornalistas têm uma especial responsabilidade quando assumem o papel de comentadores, de agentes críticos: porque têm o poder da palavra e porque têm o dever de respeitar os factos quando opinam sobre eles. A sua opinião é livre; mas deve ser séria, isto é, baseada em factos verídicos e confirmados. É uma questão de decência — à qual Maria João Avillez apelou no final da intervenção a que me refiro.

É esta mesma decência que me leva a questionar as palavras da reputada jornalista sobre os resultados do PISA (Programme for International Student Assessment), desenvolvido pela OCDE. Embora depois dela, que certamente já o tinha lido quando se pronunciou sobre o assunto, acabei agora de ler as 117 páginas do relatório português e não me parece nada que os factos mereçam as lágrimas que uma desesperada Maria João Avillez disse ter vontade de verter. Por exemplo, cito algumas passagens deste relatório, disponível on-line no site do Instituto de Avaliação Educativa (IAVE):

Portugal no contexto internacional - O desempenho médio nos países da OCDE caiu, em média, 15 pontos a matemática e 10 pontos a leitura. Isto equivale aproximadamente a meio ano de aprendizagem a leitura e três quartos de um ano letivo a matemática. Em contraste, o desempenho médio a ciências não se alterou significativamente.
A matemática - Portugal apresenta-se no 29.º lugar do ranking referente ao domínio da matemática, num total de 81 países/economias participantes, com uma média de 472 pontos neste domínio, pontuação média semelhante à média dos países da OCDE, não se diferenciando significativamente de países da OCDE como Lituânia (475 pontos), Alemanha (475 pontos), França (474 pontos), Espanha (473 pontos), Hungria (473 pontos), Itália (471 pontos), Noruega (468 pontos) e Estados Unidos da América (465 pontos).
Os alunos portugueses, a par da média da OCDE, obtiveram /.../ menos 21 pontos significativos face ao ciclo de 2018 e menos 15 pontos significativos relativamente a 2012, ano em que a matemática foi o domínio principal de avaliação.
A ciência - Os alunos portugueses obtiveram 484 pontos a literacia científica, um ponto abaixo da média da OCDE (485 pontos), /..../ pontuaram menos sete pontos não significativos face a 2018, /.../ No que respeita à OCDE, verifica-se uma tendência decrescente desde 2012, existindo uma diminuição não significativa de 2018 para 2022.
A leitura - Os alunos portugueses obtiveram 477 pontos a literacia de leitura, um ponto acima da média da OCDE (476 pontos), o que corresponde a uma descida de 15 pontos significativos em relação a 2018 /.../. No que respeita à média da OCDE, os resultados médios têm tido uma tendência decrescente nos últimos ciclos

Ainda em relação às pontuações obtidas em 2018 e 2022, recolhi do relatório Pisa Results, anex D, (disponível on-line) os dados de Portugal e de alguns outros países da Europa. Escolhi primeiro os mais próximos, de matriz latina; depois, os germânicos, com uma tradição de ensino bem diferente; finalmente, três nórdicos, entre os quais o campeão europeu:

Se considerarmos as questões socioeconómicas, cuja relação com a escola tem particular importância, cito do relatório português:

Alunos resilientes - Segundo o PISA, os alunos resilientes são aqueles que apesar de estarem no primeiro quartil (bottom quarter) do índice do estatuto socioeconómico e cultural, apresentam resultados no último quartil no seu país (top quarter). Deste modo, os alunos academicamente resilientes são aqueles que, apesar da sua condição socioeconómica e cultural de partida ser desfavorável, são capazes de contrariar essa adversidade e ter um elevado desempenho, quando comparado com os outros alunos do seu país. Em 2022, a percentagem de alunos portugueses resilientes a matemática foi de 9,4%. No domínio das ciências a percentagem de alunos resilientes foi de 11,4% e no caso da leitura foi de 12,1%. Portugal apresentou uma percentagem de alunos resilientes superior à média dos países da OCDE, no domínio das ciências e da leitura, mas uma percentagem inferior no caso da matemática

Relativamente à natureza administrativa, pública ou privada, das escolas frequentadas, lê-se no relatório de Portugal:

Matemática - Os alunos das escolas privadas apresentaram, em média, melhores resultados a matemática do que os alunos das escolas públicas (479 vs.471 pontos). Ainda assim a diferença de nove pontos não é estatisticamente significativa. Leitura - os alunos das escolas públicas pontuaram ligeiramente acima dos alunos das escolas privadas. Todavia, a diferença é de apenas três pontos não significativos: 477 vs. 474 pontos. Esta tendência já se verificava no ciclo anterior. Ciências - não existem diferenças significativas entre a pontuação média dos alunos que frequentavam escolas públicas e escolas privadas, 484 pontos vs. 485 pontos

Finalmente o sítio Datapandas.org apresenta um ranking dos países segundo a pontuação global; selecionei os mesmos 10 que apresentei no quadro acima e inclui o nº 1 a nível mundial:

Repito: não me parece que estes resultados mereçam lágrimas: temos problemas e temos que melhorar, é certo. Mas estamos a par dos países que nos rodeiam e que, muito antes de nós, tinham níveis de escolaridade muito mais elevados. Não podemos desprezar o que o que se tem vindo a fazer num país que em 1970 tinha, segundo o PORDATA, uma taxa de analfabetismo de 25,7%, taxa que em 2001 ainda era de 9%. Não há milagres, infelizmente.

Além disso, os dados relativos à questão da natureza administrativa das escolas revelam que, afinal, em Portugal as escolas públicas estão ao nível das escolas privadas. Tendo em conta o discurso mediático, quem diria?! Também relativamente ao papel da escola junto dos alunos desfavorecidos, os dados dão-nos alguma esperança, que não podemos menosprezar.

É claro que podemos todos, portugueses e europeus, chorar por outros estarem melhor do que nós e pela descida verificada nos últimos ciclos avaliados pelo PISA. Mas talvez seja melhor continuarmos a trabalhar, sem lágrimas que turvam a vista...