Opinião
“O sofrimento humano dói”
“Vim por causa desta sua entrevista, principalmente pela última frase que diz: para muitas pessoas o álcool tem sobretudo a ver com o alívio do sofrimento interno, uma forma de deixar de pensar e de sentir.
António (nome fictício) entra no gabinete de smartphone na mão e exclama: “Vim por causa desta sua entrevista, principalmente pela última frase que diz: para muitas pessoas o álcool tem sobretudo a ver com o alívio do sofrimento interno, uma forma de deixar de pensar e de sentir. Há razões de natureza depressiva e ansiosa que levam as pessoas a procurar essas formas de anestesia e é essa sensação de alívio do sofrimento que acaba por colocar muitas pessoas na rota da dependência - eu acho que sou uma dessas pessoas!”
A verdade é que realidade de hoje é turbulenta e difícil para todos nós.
O resultado imediato é quase sempre exigido a toda a hora e ninguém parece estar vinculado a ninguém.
Um vínculo relacional seguro e contentor capaz e disponível para a escuta, para a palavra e para a partilha e que possa ajudar a traduzir as reais motivações para o consumo e reduzir os seus riscos.
Parece haver uma necessidade de anestesia e uma intolerância às emoções e à capacidade interna de as expressar e de as entender, o que coloca muitas pessoas, tal como o António, na fronteira entre o abuso e a dependência.
A dependência é um caminho evolutivo que pode chegar a uma situação terminal.
Nos primeiros estádios da dependência não há sinais físicos.
As pessoas inclusive podem ainda não ter complicações, como por exemplo, as frequentes alterações hepáticas.
O que há é uma compulsão para o consumo, perda de controlo e sintomas de dependência psicológica, como são os sinais de irritabilidade e o planeamento dos consumos.
Isto acontece quando a pessoa começa a organizar a sua vida em função de quando é que vai ou não beber e a ficar muito ansiosa, por exemplo, com o final da tarde ou com a chegada do fim-de-semana.
Porque a questão principal não é se a pessoa bebe ou não bebe todos os dias, mas o que acontece com ela quando bebe.
E quando há esta perda de controlo, quer dizer que os mecanismos internos do próprio funcionamento cerebral que permitem pensar e decidir para si próprio “já bebi demais, vou parar, vou beber água” deixaram de funcionar e outros sintomas se apresentam como a persistência no consumo e o aumento da tolerância.
Todos os dias na nossa prática clínica na Unidade de Alcoologia de Lisboa somos confrontados com a dura realidade das pessoas com quem e para quem trabalhamos.
Chegam-nos cada vez mais frágeis, mais doentes, com mais complicações somáticas.
Porque o álcool provoca mais de 60 doenças diferentes, num corpo e numa mente que carregam uma fragilidade enorme.
E porque o álcool também mata e a sua desvalorização continua-nos a inquietar.
E quando uma destas pessoas nos parte é o duro confronto com esta realidade face à qual as respostas assistenciais escasseiam e os modelos de tratamento baseados exclusivamente na abstinência total também deixam muitos de fora.
Nestes momentos o coração fica apertado e procuramos encontrar dentro de nós e em equipa, sentidos, determinação e coragem para tornar cada dia de trabalho diário em mais dedicação e também mais tolerância à frustração, com todas e todos aqueles que se mantêm na luta diária para melhorar.
Mas há momentos que são bem mais difíceis que outros. Porque, como me dizia uma colega de equipa: “o sofrimento humano dói!”.