Opinião

Nós os Palhaços

15 out 2022 20:00

Reféns que somos da tecnologia, da competitividade e de ideais de perfeição, urge reflectir na restrita liberdade interior que nos é concedida

Toda a existência é uma dimensão tragicamente cómica. É provável que tudo o que construímos e obtemos, resulte intangivelmente, por arte do acaso e de uma certa «magia». Como afirma Alain Vigneau (Arte-Terapeuta e ex-palhaço), «talvez uma parte de nós tenha sede de diálogo com o mundo». O domínio da dificuldade de interacção com o contexto a que pertencemos, é possível por via de um exercício de transparência e de auto-crítica, recorrendo ao acto de rir e de desconstrução da realidade pelo humor.

A actual necessidade universal de recolhimento, de busca de individualidade e repouso, leva Vigneau a afirmar, ser determinante, em fases cruciais da nossa existência, assumir sem rodeios: «não tenho nenhuma ideia do que vou fazer; não tenho respostas; tudo parece não ter sentido; tenho o direito de não saber; tenho o direito de ser incapaz; tenho o direito de dizer ao mundo, vão avançando nas coisas sem mim, porque eu agora não alcanço»! Essa virtude é o que Alain designa de «descanso dos inúteis»: ter o direito de existir como pessoas «simples e falíveis».

Redijo este texto inebriado pela visualização do filme / documentário intitulado “Brin d'Amour”, da autoria do leiriense Frederico Custódio, que magistralmente realiza um retrato íntimo da vida e obra de Alain Vigneau. A narrativa explora a sua vida inusitada – desde a mais tenra idade, como pastor nos Pirenéus, até à sua carreira internacional como palhaço – e como toda essa experiência lhe permitiu adquirir uma compreensão peculiar da condição humana. Acompanhando Vigneau no decurso de uma das suas oficinas arte-terapêuticas, o documentário confere um testemunho sobre o resgate da autenticidade humana, convidando-nos a refletir sobre a nossa relação com a “criança interior”.

Nesta obra de uma intensidade emocional esplêndida, conjuntamente com os participantes do filme («não-actores», pessoas comuns, participantes num dos workshops de Alain), somos impelidos a tomar consciência das máscaras que ao longo da vida construímos, e de como elas nos encobrem a forma mais livre de existir. Alain, enquanto «homem-palhaço», lega-nos uma mensagem de confrontro com as limitações da dimensão humana. Reféns que somos da tecnologia, da competitividade e de ideais de perfeição, urge reflectir na restrita liberdade interior que nos é concedida. “Brin d’Amour” canaliza-nos para a cogitação sobre a perda de espontaneidade.

Neste trabalho foram entrevistadas diversas personalidades: Tortel Poltrona, importante palhaço espanhol e Claudio Naranjo, reconhecido psiquiatra e um dos pioneiros na utilização do teatro enquanto ferramenta terapêutica. “Brin d’Amour” adopta um requinte informal, procurando acompanhar na sua abordagem visual e sonora, o matiz poético que perpassa da personalidade do protagonista e dos temas abordados (a perda, a liberdade, a saudade, a criatividade, o despojamento e o amor).

A música adquire no filme uma importância notável, não somente no acentuar comocional que confere à narrativa, como também, no entoar telúrico do espaço dramatúrgico documentado. De destacar a dissonância da transparência e a nitidez da invisibilidade que nos são proporcionadas pelo colorido imagético-musical do compositor André Barros, que assina a banda sonora do filme. Todos somos palhaços: líricos, inocentes, ridículos e frágeis, expondo a nossa ingenuidade. Em busca desse estado ininterruptamente falível.