Opinião
No meu alfabeto mágico há livros e pedras
Gosto destes objetos que me provocam boas emoções e a seguir sentimentos
“Um arrátel de açúcar, meia canada de leite, vinte e seis gemas de ovo. Às gemas desfeitas com açúcar junta-se um cálice de vinho fino e raspa de limão. Vai a cozer em banho-maria”.
Esta receita, assim redigida com o título de “Pudim Francês”, veio de casa da minha bisavó Carolina Constança e foi registada, no início do século vinte, num livro de receitas da sua filha, minha avó. Este livro faz parte do meu mundo de objetos sem valor, mas que para mim são preciosidades.
E tenho muitos destes objetos que perceciono quase que como divididos em categorias: uns motivam-me para a ação como, por exemplo, este pudim que hoje vou fazer (metade da receita, claro!) como sobremesa para o jantar; outros levam-me a imaginar momentos da vida dos meus avós.
Numa pedra identificada pelo meu pai como pertencente ao Pisão (o local onde, com a ajuda de uma torrente de água os cobertores de papa eram amaciados antes de serem cardados) ou numa secretária velhinha, eu vejo os meus avós a trabalharem e às vezes até meto conversa com eles: - Avô o que está a fazer? - Avô o que está a escrever? E eles, amorosamente, respondem-me obrigando-me a viajar para trás no meu tempo, maravilhada à descoberta!
Sim, reconheço. Gosto destes objetos que me provocam boas emoções e a seguir sentimentos, porque apesar de me chegarem do passado ajudam-me, não só a construir o presente como até a ter a veleidade de interferir no futuro.
Agora já apoiada pelas neurociências (para António Damásio “as funções cognitivas, como o pensar, o induzir, o raciocinar e o tomar decisões são guiadas pela emoção e pela avaliação e julgamento das consequências das ações”) reforço a ideia que, afinal, sempre tive acerca da importância das emoções desencadeadas pelo afeto ou desafeto, na forma como aprendemos e como consolidamos e acedemos ao conhecimento.
Então, como mais velha, professora, avó ou outra coisa qualquer, sinto que tenho nos ambientes de afeto positivo que crio com os mais novos – sempre a mostrar-me como modelo, mas umas vezes elogiando, outras criticando, por vezes com recompensas, às vezes com castigos - as ferramentas ideais para lhes ensinar a serem construtores do lado bonito da vida.
Mas será que tenho razão? Aproveito estar com o livro de receitas da minha avó aberto na página do “Pudim Francês” e chamo-a à minha reflexão: - Avó, acha que tenho razão? – Acho que sim, minha filha - disse-me ela.
Reconfortada pela concordância da minha avó fiquei, como gosto de por vezes ficar, quase como que suspensa no ar sem nada pensar, mas eis que algo me traz de volta à realidade. Oiço a avó segredar-me: - Se queres fazer o pudim para a sobremesa do jantar deixa-te de preguiças e vai mas é para a cozinha!
E eu fui. Por causa dela eis-me agora atarefada a pesar meio arrátel de açúcar, a medir meia canada de leite, a procurar um vinho fino …
Texto escrito segundo as regras do Acordo Ortográfico de 1990