Opinião

Música | Sim, é um texto sobre o celofane dos discos de vinil

5 dez 2025 09:00

O não abrir do vinil e o rasgar de celofane convergem numa mesma lógica cultural. O trabalhador que aplica o celofane está a participar num drama simbólico que só se completa na casa do colecionador

1. O celofane: um rito de passagem industrializado

O embalamento em celofane e a aquisição simbólica do vinil sem audição física — podem ser vistas como expressões contemporâneas de uma cultura do objeto entre o ritual e o descarte, onde o valor simbólico se sobrepõe à funcionalidade, e onde o gesto de preservação coexiste paradoxalmente com a disposição para o descarte imediato. Como rito de passagem industrializado, o celofane, apesar de ser removido quase que instantaneamente após a compra funciona como um limiar ritual entre o produto em estado virgem e o seu uso pessoal.

É uma camada simbólica, uma promessa de autenticidade e integridade do objeto. Na fábrica, embalá-lo é uma operação técnica, mas carrega um peso quase sacramental: é o gesto que sela o vinil como mercadoria pronta para o mundo. Contudo é efémera — uma proteção destinada à destruição imediata. Esta tensão entre preservação industrial e descarte pelo consumidor revela uma espécie de teatralidade da produção: o objeto é preparado como se fosse um relicário, para ser logo desconsagrado.

Este paradoxo ecoa práticas simbólicas mais amplas na cultura de consumo, onde a embalagem assume um valor quase fetichista, ainda que a sua função prática seja passageira. No caso do vinil, o celofane é o último ato de uma cadeia de produção que valoriza o tato, o olhar, a presença física — e, ao mesmo tempo, é o primeiro obstáculo a ser rompido por quem deseja possuir verdadeiramente o objeto.

2. O vinil não aberto: colecionismo como performance cultural

Mas há quem compre vinis e nunca os abra por escolha simbólica. Esses discos não são suportes sonoros, mas ícones de pertença. A audição real ocorre via streaming — mais portátil — mas o vinil permanece como testemunho físico de uma relação com a música. O vinil deixa de ser um meio e passa a ser um signo: um marcador de resistência simbólica à fluidez do digital. Curiosamente, essa “não utilidade” do vinil (no sentido estrito de reprodução sonora) não o desvaloriza, realça sim o seu valor como artefacto cultural. É como se a música fosse apenas o pretexto para a posse de uma memória coletiva materializada em plástico e papel.

Conclusão: entre o descartável e o atemporal

Em polos aparentemente opostos, o não abrir do vinil e o rasgar de celofane convergem numa mesma lógica cultural. O trabalhador que aplica o celofane está a participar num drama simbólico que só se completa na casa do colecionador. Esta dualidade reflete uma tensão mais ampla da contemporaneidade: vivemos numa era que sacraliza o tangível, mas que valoriza a conveniência do imaterial. O vinil, nesse sentido, é menos um formato musical e mais um espelho das nossas contradições culturais.