Opinião
Música | Mulatu Astatke: O arquitecto do ethio-jazz
Abriu portas para a música africana no cenário global e influenciou artistas do jazz, funk, eletrónica e até do hip hop
Poucos músicos podem reivindicar a invenção de um género musical. Mulatu Astatke pode. É dele o rótulo e a sonoridade do ethio-jazz, uma fusão entre as escalas etíopes e a harmonia do jazz, temperada a gosto com funk, soul e ritmo latino.
Mulatu Astatke nasceu em 1943, em Jimma, Etiópia, numa família que o queria engenheiro, mas o destino tinha outros planos. Desde cedo mostrou curiosidade para com a música, cantava nas escolas, acompanhava ritmos tradicionais e ficava fascinado pelos sons do mundo exterior, que chegavam à sua terra através de rádios e discos importados.
Ainda adolescente, decidiu que queria tocar jazz e estudar música e começou uma jornada que o levaria primeiro a Londres e depois a Boston e a Nova Iorque, onde se tornou o primeiro estudante africano da prestigiada Berklee College of Music.
Entre aulas de harmonia, improvisação e composição, Mulatu ía absorvendo tudo: bebop, jazz latino, soul, funk e música africana e enquanto os colegas sonhavam com big bands e recriavam standards, ele imaginava uma sonoridade que soasse etíope, mas, ao mesmo tempo, moderna e global.
Quando regressou a Addis Abeba, nos anos 60, levou bongos e um vibrafone no porão e uma bagagem musical inédita na capital etiope. Addis estava em ebulição com clubes noturnos, rádios locais, grupos, orquestras e jovens músicos talentosos, todos a tentar encontrar uma identidade própria.
Foi nessa tempestade perfeita que Mulatu criou o ethio-jazz. Uma fusão entre as escalas pentatónicas etíopes e a sofisticação harmónica do jazz com a cadência de ritmos latinos e funk. Canções como “Yekermo Sew” ou “Yegelle Tezeta” tornaram-se clássicos instantâneos, hipnóticos, dançáveis, modernos mas profundamente enraizados na tradição. A bateria conversava com o vibrafone enquanto o baixo mantinha tudo no sítio certo, os sopros improvisavam e estruturavam uma arquitetura sonora única.
A chegada do regime Derg e a repressão cultural na Etiópia obrigaram muitos músicos a dispersar-se pelo mundo. Mulatu continuou sempre a gravar e a tocar, mas a sua música tornou-se um tesouro escondido, circulando discretamente em lojas de vinil e entre colecionadores. A redescoberta veio com a série Éthiopiques, nos anos 90, que apresentou ao mundo o som psicadélico e sofisticado de Addis Abeba dos anos 70. DJs, produtores e músicos de várias gerações começaram a samplar, remisturar e a reinterpretar os seus temas. Trabalhou com nomes contemporâneos como The Heliocentrics, participou em muitas colaborações internacionais e intergeracionais e viu o seu nome associado a bandas sonoras de filmes como Broken Flowers, de Jim Jarmusch.
O impacto de Mulatu Astatke é inegável: criou um estilo único, abriu portas para a música africana no cenário global e influenciou artistas do jazz, funk, eletrónica e até do hip hop. É um exemplo de como tradição e modernidade podem coexistir e de como um músico pode ser simultaneamente guardião e inovador.
Hoje, com mais de 80 anos e em plena atividade, Mulatu é reconhecido pelos seus pares e reverenciado, mas mantém a humildade característica de quem trabalha incansavelmente pela música e não pelo ego. Se a música é uma linguagem universal, foi Mulatu que lhe acrescentou um irresistível sotaque etíope.