Opinião
Marias
Será o riso das Marias que chegam de barco diferente do riso das Marias que estão cá?
A minha filha está ali ao lado, no seu quarto. Por vezes, ouço-a teclar ou rir ou murmurar partes de músicas que ouve com auscultadores.
Quando ela era criança, ficava a escutar a sua respiração enquanto dormia, pensando que o murmúrio da respiração talvez seja a música mais bela e tocante que possamos escutar.
Contudo, a música do riso não fica muito atrás; não consigo, agora, escutar a sua respiração mas fico atento ao seu ocasional riso; e sempre que o escuto, sorrio.
Contudo, preciso forçar-me a lembrar que isto – escutar o riso de um filho – é uma preciosidade, algo aceite como tão natural que, por vezes, nem reparamos, não o sentimos verdadeiramente, não escutamos a sua música; esquecemos como é precioso.
Acontece que, antes, estive a ver notícias sobre pessoas que fogem dos seus países e arriscam a vida atravessando um mar que, por vezes, as mata; e que depois, quando não morrem no mar, são mais ou menos recebidas como animais.
Vi estas notícias sobre pessoas que chegam à Europa vindas da Síria ou de países africanos ou de países asiáticos e perguntei-me qual seria a quantidade de desespero necessária para forçar alguém a pegar nos seus filhos e colocá-los num barco sobrelotado, avançando em direcção ao desconhecido, ao incerto, ao perigo, a uma esperança de salvação; sem rir, pois imagino que no interior de um barco meio à deriva não haverá muito riso.
Pensei na minha filha e perguntei-me se seria capaz de o fazer; perguntei-me, também, como se dirá Maria, que é o nome dela, em sírio.
Perguntei-me por que motivo não serão as Marias sírias bem recebidas, quando sobrevivem às ondas e chegam a terra europeia.
Perguntei-me por que motivo as transformam em números, em quotas, em gráficos.
Perguntei-me por que motivo não podem estas Marias, que são jovens, viver e sonhar e crescer e rir na Europa, na mesma Europa que se lamenta e angustia por ser um continente de velhos.
Será o riso das Marias que chegam de barco diferente do riso das Marias que estão cá? Afinal, como se ri em sírio?
Pensei em tudo isto por causa da notícia do dia: mais quarenta migrantes encontrados mortos num barco, a sul de Lampedusa.
Lampedusa é uma ilha italiana mas, também, o nome de um escritor que publicou um livro chamado O Leopardo; é deste livro uma frase famosa que toda a gente já leu no facebook: “É preciso que tudo mude, se quisermos que tudo fique como está.”
Que, no fundo, é o que continuará a acontecer: apesar da Europa se entregar a aparências de acção e intenções de mudança, no fundo tudo permanecerá como sempre e as Marias sírias continuarão durante muito tempo sem rir; os seus pais continuarão a colocá-las em barcos, pois quando se perdeu o riso dos filhos já não há muito mais a perder.
Penso nisto e vou escrevendo quando reparo que a minha filha não ri há algum tempo; e vou ver o que se passa.
(Esta crónica foi publicada neste jornal em 20/08/2015. Mudemos “Síria” para “Afeganistão”, mudemos “barco” para “avião”. Tudo o resto se mantém actual. Não é?)