Opinião

Literatura | Jesusalém

4 abr 2020 13:29

A citação “Toda a história do mundo não é mais que um livro de imagens reflectindo o mais violento e mais cego dos desejos humanos: o desejo de esquecer.” de Hermann Hesse serve de epígrafe ao romance Jesusalém de Mia Couto (2009).

E, de facto, é o desejo de esquecer que leva Silvestre Vitalício a fugir da cidade e a refugiar-se com os seus dois filhos, Mwanito, de oito anos (o narrador, que inicia a narrativa com a frase: «A primeira vez que vi uma mulher tinha onze anos e me surpreendi subitamente tão desarmado que desabei em lágrimas.») e Ntunzi, o filho mais velho, e com o militar Zacaria Kalash, com a ajuda e o apoio do Tio Aproximado, numa velha coutada abandonada no meio do mato, depois de ter dito aos filhos que o mundo acabara e eles eram os únicos sobreviventes.

A esse lugar deu Silvestre Vitalício o nome de Jesusalém, «a terra onde Jesus haveria de se descrucificar.»

Tal como deu nome ao lugar, também (re)batizou cada um dos que com ele partiram e a ele próprio.

Nada podia fazer lembrar o «Lado de Lá».

A obra está dividida em três livros e estes em vários capítulos todos eles encimados por maravilhosos poemas de Sophia, Hilda Hist, Adélia Prado – só mulheres. Na realidade, este é um romance que é um hino às mulheres.

Cada capitulo do Livro Um é dedicado a cada um dos habitantes de Jesusalém e à jumenta Jezibela, «a última personagem da humanidade».

De referir que, no final deste Livro Um, o leitor sente-se algo perdido sem saber como a trama vai evoluir.

É que tudo parece quimérico, perdendo-nos no mundo de loucura do pai Silvestre e no emaranhado poético e gentio da linguagem de Mia Couto.

O Livro Dois estabelece o ponto de viragem na história ao introduzir a primeira mulher, Marta, portuguesa, que vai a Moçambique à procura do seu marido e grande amor, Marcelo, que fora lá “em peregrinação de saudade” e se apaixonara por Noci, uma jovem preta, linda.

Ambas nos são apresentadas pelo narrador – ele que vira uma mulher (Marta) pela primeira vez aos onze anos – como seres diáfanos, belos, ondulantes.

A chegada de Marta, que se vai tornar amiga de Noci, cria um enorme rasgão no dia-a-dia de Jesusalém, preparando o regresso à cidade, o estado de alienamento de Silvestre, a libertação desejada de Ntunzi, e o desabrochar da vida de Mwanito, o que acontece no Livro Três.

Transversal às três partes da narrativa, paira a presença de Dordalma, mãe dos rapazes, que morreu em circunstâncias dúbias e de quem Mwanito não se lembra, mas pressente.

Trata-se, de facto, de um hino às mulheres – que se vê nas referências às manifestações feministas, bem como na descrição da sensualidade das mulheres africanas que lhes vem da terra, luxuriante e voluptuosa.

Mas é, de igual modo, um romance de amor, de tragédia e de violência que trata de forma suave e poética a solidão, a culpa e o medo, a loucura, a guerra.

 

 

Texto escrito segundo as regras do Acordo Ortográfico de 1990