Opinião
Letras | Vitória de amor e de guerra – Luísa Beltrão
Fluida a leitura, tal como a escrita: simples, mas escorreita, empolgante como todo o enredo, que, sem forçados “tiques narrativos”, vai agarrando o leitor com pequenos capítulos que saltitam no tempo e nos espaços
Foi num dos (meus) périplos pelas livrarias que me surgiu a linda capa de Vitória, e o nome da autora que há muito não me aparecia: Luísa Beltrão.
Logo na memória se me delineou a imagem de cada um dos livros da tetralogia Uma História Privada: Os Pioneiros, Os Impetuosos, Os Bem-Aventurados e Os Mal-Amados que, em finais de 90 todos lemos, entusiasmados, cá em casa, permitindo-nos, sem que pertencesse ao subgénero do romance histórico, ler e aprender sobre a evolução de Portugal ao longo do século XIX e XX, numa perspetiva familiar e social aparentemente simples e corrente.
Leitura – e escritora – marcante que não se me apagou com o tempo, juntamente com um belo desconto com que se condenam à morte os livros não mediáticos – seja isso o que for – levaram-me a recolher o livro e a empreender a sua leitura. Que não me desiludiu.
Na senda da narratividade da tetralogia, apresenta-se-nos uma nova “história privada” de âmbito mais restrito, mantendo, porém, uma narração em rede que entrecruza episódios das várias famílias provindas dos locais mais profundos de um Portugal atrasado, fechado, analfabeto, misérrimo, – autênticos servos da gleba em pleno século XIX – com outras mais urbanas pontuados de gentes de outras civilizações e que vão, nas suas ligações matrimoniais programadas ou imprevisíveis, desembocar na personagem principal – Vitória.
O enredo principal é simples: Vitória – fruto de toda esta panóplia de famílias tão diversas, cujos meandros e suscetibilidades vamos conhecendo desde meados de oitocentos – pertencendo a uma família da alta burguesia lisboeta, esposa e mãe, resolve oferecer-se voluntária para França a fim de acompanhar o marido, Guilherme, oficial do Corpo Expedicionário Português a servir na Flandres em 1917. Quer o acaso, ou talvez a influência de familiares franceses da parte de sua mãe, que vá servir e aprender enfermagem para o bem organizado hospital inglês Hôpital Bom Secours do Boves, próximo do local onde Guilherme coanda, nas trincheiras, os tão mal preparados e tão abandonados soldados portugueses enviados para a Guerra.
O sofrimento é atroz, quase indizível, sempre refletido pelo olhar sensível, tocante, algo receoso, mas combativo e espantosamente apaixonado de Vitória. Esta é uma Vitória “de guerra” como referido no subtítulo do romance porque narra todo o ambiente de guerra não só nas trincheiras da Flandres, mas o que se vivia em Portugal naquela época marcada pelo desnorte que infelizmente corroeu a República. Mas é mais ainda uma Vitória “de amor”: de amor pela vida humana sempre tão desprezada, de amor pelo sofrimento do marido e de todos os que lhes estão entregues, de amor pelos filhos pequenos que deixou em Lisboa, de amor por Andrew, a enigmática personagem que, estropiado da guerra, vem morrer no Bom Secours…
Fluida a leitura, tal como a escrita: simples, mas escorreita, empolgante como todo o enredo, que, sem forçados “tiques narrativos”, vai agarrando o leitor com pequenos capítulos que saltitam no tempo e nos espaços.
Se se interessa por História, leia! mas este não é um romance histórico.