Opinião

Letras | Valter Hugo Mãe (2020) Contra mim ou dos socalcos da memória

4 abr 2023 09:05

O tempo pandémico parece ter sido o do ajuste de contas com as memórias do passado, e de como condicionou (iluminou?) a relação visceral do homem-menino-adolescente VHM com a arte da escrita e a vida prodigiosa das palavras

Nunca escrevi sobre nenhum livro de Valter Hugo Mãe [VHM]. Mas leio-o, muito e há bastantes anos, e inscrevo-o nas minhas aulas de Literatura, quer com a análise dos romances, quer com a afetividade valorativa e formativa dos seus belos textos infantis.

Desenhador e músico, letrista e homem de comunicação, os variados fazeres de VHM parecem andar enredados nos traços, nas palavras e nos sons significantes: as artes pictóricas, literárias e musicais relacionam-se de forma misteriosa e encantatória. Se acrescentar a esta breve resenha a quantidade de prémios literários (o José Saramago já foi em 2007…) e outros recebidos, encontramo-nos perante um dos casos qualitativamente incontornável na nossa casa cultural.

Quando vi o título Contra mim, de 2020, espantou-me que um livro de memórias de infância e adolescência, dividido em 3 secções – 1.º livro: As palavras pariam os seus significados (a infância); 2.º livro: Caxinas Hardcore (a adolescência); Nota do Autor (a análise do adulto) – e com prefácio da, então recentemente falecida, Nélida Pinon, se posicionasse como uma oposição ao seu ego: CONTRA MIM. Porém, o tempo pandémico parece ter sido o do ajuste de contas com as memórias do passado, e de como condicionou (iluminou?) a relação visceral do homem-menino-adolescente VHM com a arte da escrita e a vida prodigiosa das palavras.

O cariz autobiográfico permite-lhe encontrar-se consigo próprio, longe de um narcisismo primário, pois revê instantes de sortilégio guardados pela sua memória e (re)lê-os em função da sua estória coetânea, fornecendo ao leitor possibilidades novas de interpretação dos textos. E a/de si próprio, obviamente, como quando, já adulto, nos conta do seu fascínio pelas palavras na relação biológica com a sua cegueira-miopia, tarde diagnosticada, para concluir: “[…] Mantermo-nos sempre aquém do grito, no território auscultador de sentidos, é a lucidez possível de um poeta. A vitória desejável, ao menos, a desejável para o tempo de sobreviver. Quem sabe, à morte, tudo vira entropia e perdure apenas pela nota aguda de um tenor, de um soprano, de alguém que pressentimos no silêncio quando começamos a leitura. Talvez, então, estejamos reduzidos ao absurdo. Mas não agora. Não agora.” (opus cit., p. 273).

O 1.º livro, ou parte, com 29 capítulos, é o mais longo, e revela-nos uma infância destacada de escolhido ou marcada por uma sensibilidade quase mórbida de tão intensa. São as pequenas e perversas descobertas da infância, seja as da família, dos amigos ou do viver social que acabam por fazer dele o ser diferente pelas suas reflexões/visões, reconhecido pelos outros como contraponto de si, numa antevisão do seu futuro inquieto: “Naquela altura, secretamente, sempre grato por assistir mais do que existir, eu acalentava o desejo de ganhar verdadeiramente vocação. Haveria de maturar para uma utilidade. Eu haveria de ser capaz de ajudar os que sofriam. Pouco ou muito, mudaria o mundo.” (p. 170).

Na 2.ª parte, com 15 capítulos, a adolescência em Caxinas, surpreende pelas descobertas das famílias-empresas-seitas-grupos e seus muitos negócios; pela emersão da emoção e da iniciação sexual; pelo encontro salvífico com adultos-professores abridores de horizontes insuspeitados; pelas revelações dos sentidos despertos para as muitas injustiças/falsidades quotidianas do relacionamento familiar: “Que pena não tivessem passado na nossa escola de Frei João para ver como estava o painel que eu desenhara, dizia a professora. Os artistas, afirmaria depois o meu pai, acontecem aos rapazes mais diferentes, aqueles que não se entenderiam de outro modo. E eu lembrei, no Natal o meu pai não estava. E o presépio havia sido perfeito para imitar outro mundo que não o nosso.” (p. 231).

Expostos estes socalcos, os fazeres do por vir de VHM abrem-se a outras memórias...