Opinião

Letras | Paulo Moreiras (2025) Leiria OU a ficcionalização do lugar queiroziano…

5 dez 2025 08:58

A Leiria de PM acena ao leitor com um ficcional piscar de olhos: Leiria existe e existirá enquanto lugar literário

Pelo menos desde que o castelo foi erguido, Leiria tem sido um lugar fértil em figuras literárias de reconhecido destaque e renome nacional – … el-rei D. Dinis; Francisco Rodrigues Lobo; Eça de Queiroz; Acácio de Paiva; Afonso Lopes Vieira; Paulo Moreiras [PM]; Carla Pais… – ou por nascimento in loco ou por estância literária de intrigas e descanso corporal nómada ou sedentarismo assumido. Se as estátuas em bronze nas praças públicas leirienses são de Rodrigues Lobo e Lopes Vieira (ambas do século passado e de mestre Joaquim Correia), os registos digitais nas redes contemporâneas serão mais ligados às ironias críticas e mordazes de Eça, o ilustre visitante ‘endiabrado’, ou ao orgulho acalentado pelos préstimos literários premiados e aproximações gastronómicas de boa disposição.

Descontadas as dores de competição – seja de rankings (de que ordem for…), seja de visibilidade digital (o espelho das redes que nos (de)forma) – Leiria existe. É o 12º volume de uma coleção de nome Portugal, da ed. Centro Atlântico, que tem publicado a bom ritmo, desde 2024, já 18 volumes sobre ‘entidades geográficas’ portuguesas: Sesimbra, Cascais, Setúbal, Lisboa, Sintra, Terceira, São Miguel, Porto, Vila Nova de Gaia, Vila Nova de Famalicão, Santarém, Leiria, Évora, Braga, Faro, Beja, Vila Franca de Xira, Amarante. Leiria apareceu em maio 2025, incluído na síntese-reclame de batismo: ”Portugal inteiro dentro de um livro. Os escritores portugueses mais acarinhados e um fotógrafo de património. O mesmo horizonte para a ficção e a realidade, em que criatividade literária e riqueza fotográfica mergulham na nossa geografia. Um percurso concelho a concelho, ilha a ilha, escritor a escritor.” As edições são bilingues (português/inglês) e acompanhadas por belas fotografias de Libório Manuel Silva. Com intenções de divulgação turística ou outras sustentações (alguns dos volumes são comercializados junto com vinhos da região), a coleção prima por uma qualidade editorial fora do comum (gramagem do papel, grafismo, qualidade das fotografias) e as suas lombadas compõem uma faixa horizontal patriótica que certos leitores ainda apreciarão nas suas estantes físicas (enquanto a materialização das árvores ceifadas as for permitindo…).

O texto novelístico de PM não engana o leitor: intitula-se “A Balada dos Ausentes”, e é dedicado ao intelectual (leiriense adotivo) Fernando José Rodrigues (1956-2024). Desde o portal de abertura, Leiria mostra a importância dos que já morreram e nos legaram um passado: os lugares geográficos e literários – que continuam vivos e metamorfoseados no passado – herdados no presente visitável pelo turismo. Ora, é a figura de um touriste, de visita a Leiria para surpreender o seu amigo Eça de Queiroz que vai situar a narrativa no tempo (séc. XIX) e no espaço (Leiria novecentista, ‘beata’, no dizer queiroziano), brincando com reconhecimentos de ortodoxias que perduram e ironizando com algumas evoluções, situando sempre no contexto cultural e literário português e contactos com o mundo exterior, sobretudo França e Inglaterra.

O omnisciente narrador descreve exaustiva e mordazmente todas as situações que rodeiam a chegada da figura ilustre e fina – e nenhum pormenor escapa aos olhares coscuvilheiros da malha social de então (como a de hoje…) – exacerbando a curiosidade dos leitores que queiram confirmar a persistência de alguns lugares onde a intriga se aventura, com o vagar diarístico da jornada que o ilustre desconhecido calcorreará por um singelo, quente e ‘borraceiro’ dia de Agosto.

Chegado de diligência da estação do caminho-de-ferro de Chão de Maçãs (linha do Norte, freguesia de Tomar), os pontos de referência leirienses vão sendo palmilhados, com a ajuda ladina do ‘cachopo’ Acácio de Paiva, admirador confesso do senhor administrador do Concelho: Torre Sineira, Arco, choupos das margens do Lis, Largo do Chafariz, Fonte Grande, estalagem do Cruz, Sé de Leiria, lojas das arcadas, rua do Arco da Misericórdia, Farmácia de Leonardo da Guarda e Paiva, pensão da D. Isabel, Travessa da Tipografia, rua Direita, rua do Arco do Açougue, Adega dos Amigos. Num círculo fechado, o encontro físico com o cónego Dias, que o encaminha para Abel Parreirinha, o dono da Adega dos Amigos, remata com uma excelente cabidela o paladar do touriste e do leitor do séc. XXI.

A paixão pela fotografia de Abel e a sua inclinação para a tagarelice, fazem esquecer o dissabor do desencontro com o amigo Eça. Ao bater das sete (do ‘sino da minha aldeia’…) volta a apanhar a diligência, depois de ter oferecido ao petiz Nossa Senhora de Paris, de Victor Hugo (vénia à cultura francófona idolatrada em novecentos). Após uma elipse temporal, no Inverno de 1888, será Acácio de Paiva, jovem de 25 anos, a dar conta ao leitor da identidade do touriste falecido então: Carlos Fradique Mendes. A Leiria de PM acena ao leitor com um ficcional piscar de olhos: Leiria existe e existirá enquanto lugar literário: respira (religiosa e comensal-mente…) a literatura.