Opinião

Letras | Maria Teresa Horta (2014), Meninas OU a fragilidade do mundo

28 mar 2025 08:17

Publicado pela primeira vez em 2014, não como um resultado de ideologia ou ‘arte panfletária’, mas como inscrição ética no mundo

De seu nome completo Maria Teresa de Mascarenhas Horta Barros, a grande escritora, jornalista, ativista e poetisa portuguesa, nasceu em Lisboa em 1937 e morreu a 4 de fevereiro deste ano. Conhecido que é todo o processo ligado a Novas Cartas Portuguesas, em coautoria com Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa, que seria julgado em 1972, torna-se quase impossível não ler a produção literária de Maria Teresa Horta (ou qualquer uma das outras duas Marias…) com o peso da ideologia defendida. No entanto, gostaria de ler a sua coletânea de contos Meninas, publicado pela primeira vez em 2014, não como um resultado de ideologia ou ‘arte panfletária’, mas como inscrição ética no mundo, repleto de fragilidades.

O livro encontra-se dividido em duas grandes partes, sendo a Iª constituída por 17 contos, cujas protagonistas são sempre crianças que, de uma forma ou de outra, sofreram abandono afetivo; a IIª contém 15 contos, e 1 poema, e o registo altera-se sensivelmente já que os contos se assemelham a esboços de novelas ou janelas para novas narrativas maiores, e as protagonistas são elas e o seu passado, desde a infância. De facto, o primeiro conto, “Lilith”, passa-se ainda no ambiente paradisíaco do ventre materno e o último, “Estrela”, termina com o suicídio da protagonista, vítima de abuso sexual paterno, no rio antes de desaguar no mar. Da vida à morte, todas estas meninas são apresentadas numa gritante solidão, e o elemento aquático acaba por ser o símbolo da origem e do final de tudo, abafando os gritos que as personagens sentem nem sequer lhes ser permitidos. Daí a brevidade das narrativas, feitas de subentendidos e de alusões que o leitor é convidado a desvelar, mas não queixas abertas: melancolia, dor e monstruosidade do mundo que continua a ecoar no processo de um mundo livre. Ou de como a liberdade ideológica nem sempre é capaz de ouvir e ver, sentir, adivinhar, os pedidos de auxílio que emanam do silêncio das meninas. Por isso entendo o poema “Meninas”, com que termina a IIª parte, como uma intromissão do sujeito poético, a sublinhar na adversativa final como é no feminino, de filha para mãe e de mãe para filha, que continuam a falar as injustiças do mundo que a liberdade por si só não resolve:

“Quando as meninas / fitam o nada / de olhos vagos // Uma brisa cruel / vacila e sussurra / no seu peito // Estão a ver um anjo / - imagino // Mas as mães / desesperam” (p. 301)

Considerem-se, então, as diversas negações da felicidade das meninas: Lilith e o abandono primordial do nascimento; Daninha e a fuga pela arte da palavra, dádiva que a afasta da mesquinhez e inveja dos outros; Recém-nascida, a bebé a quem a mãe abandona emocionalmente; Desobediência, a Lucinha de dois anos que começa a compreender as falhas do mundo adulto, reagindo às proibições; A Ilha, onde a criança apenas se pode limitar a ver, sem seguir, a procissão; Ondas, em que Matilde é salva (mas de quê ou de quem?) de um incidente na travessia para a ilha do Pico; Abismo, em que Beatriz sofre a violenta desatenção da mãe; Efémera, em que a menina se apercebe e sofre com a disfuncionalidade da relação entre os pais; Lápis-lazúli, a perceção dolorosa da menina que é objeto no meio da separação afetiva dos pais; A Espia, com a menina a ser voyeur das cenas de amor dos pais; Calor, com Mónica a sentir-se um empecilho na vida da mãe; Raquel, a secar com o abandono da mãe e o desamor violento; Eclipse, com Laura a mimetizar em si mesma a fuga da mãe; Perecível, em que a diferença da mística Teresinha é motivo de exclusão; Azul-da-China, com o episódio do furar das orelhas a Sara; Branca de Neve, e a relação de ódio com a madrasta; Azul-Cobalto, em que a menina antevê a fuga da mãe e se recrimina por não a ter morto. Efetivamente, estas 17 personagens, podem definir-se como uma única, em vários momentos da sua existência.

A diferença com a IIª parte, é que a maioria das personagens reflete já o intertexto de obras lidas e escritas por Maria Teresa Horta, e as narrativas são um esquisso de algo mais complexo. Porém, sempre sem resolução possível: não há abertura possível nos finais fechados em que só o alheamento em si mesmas pode dar às meninas uma luz ao fundo do túnel. Sozinhas, as meninas sofrem a monstruosa fragilidade do mundo.