Opinião

Letras | João Pinto Coelho (2022) Mãe, doce mar ou o ventre catártico da escrita…

10 mar 2023 13:28

O prodígio da escrita deste romance, que desfaz o papel do acaso com as imersões omniscientes em investigações selecionadas de lugares e tempos passados

Nunca tinha lido João Pinto Coelho [JPC]. O título Mãe, doce mar (2022), grafado a branco no azul marítimo da capa, reprodução do óleo sobre tela Sandy Neck, Light House – Cape Cod, de 2017, foi o ‘canto da sereia’ a atrair-me e fazer mergulhar.

Folheei os abundantes arquivos e recursos digitais, guardiões da memória do mundo na virtual nuvem da rede: nascido em Londres em 1967, JPC frequentou Belas-Artes, licenciou-se em Arquitetura, e passou temporadas nos EUA (onde trabalhou num teatro profissional, perto de Nova Iorque), mas viveu a maior parte da vida em Lisboa. Investigou durante duas décadas a perseguição aos judeus e integrou ações do Conselho da Europa nos antigos campos de Auschwitz – cinzas duma poeira que se encontrará no 1.º romance, Perguntem a Sarah Gross (2014).

Em 2017, com Os Loucos da Rua Mazur, venceu o prémio LeYa e foi finalista do prémio literário Fernando Namora. 2020 é a data do 3.º romance, Um Tempo a Fingir, finalista dos prémios da União Europeia para a Literatura e do literário Fernando Namora. Os três integram o PNL.

Curiosa, porém apenas leitora (e recetora impregnada…) de breves palavras críticas sobre os 3 romances anteriores, li Mãe, doce mar virginal e avidamente, encantada pelo novelo bem urdido e exemplarmente registado por um narrador autobiográfico que alterna com um poderoso investigador omnisciente, capaz de quebrar/alargar as fronteiras do tempo e do espaço, que cerca e enreda as personagens até um epílogo de 5 páginas, datado de ‘Cape Cod, Massachusetts | agosto de 2022’. Tão sintético como um verbete ou listagem de arquivo, que pretendesse prender qualquer linha solta e reintegrar as peças do puzzle encontradas em contratempo, a metacognitiva e misteriosa espiral desenhada pela frase inaugural do romance – ‘Tinha doze anos quando conheci a minha mãe – esta frase dá para tudo, até para abrir um romance. / E, no meu caso, é verdade.’ (opus cit., p. 9) – converte-se na circularidade da frase de abertura/fecho do epílogo, a obrigar o leitor a ser cúmplice da inevitabilidade da tragédia pessoal, familiar, amorosa e relacional que o mar da pintura da capa já revelava (assim como as citações escolhidas como abertura de cada uma das partes): ‘Tinha doze anos quando conheci a minha irmã – esta frase dá para tudo, até para acabar um romance. / E, no meu caso, foi verdade.’ (p. 193).

Se a tragédia é sempre, de algum modo, um fechamento, o narrador Noah despede-se com o reino mágico da infância, onde as aparências são a verdade, em oposição ao mundo real dos adultos, onde escondem outra verdade ou são uma mentira. Como leitora, senti que este romance, com muito de revelação biográfica (e psicanalítica?), exigirá uma continuação pela claridade/sublimação das dolorosas janelas abertas, pulmões catárticos do ser. O corpo textual constitui-se por 4 grandes blocos, desiguais, titulados com o nome das três personagens triangulares – NOAH (61pp.) | FRANK (47pp.) | PATIENCE (29pp.) | NOAH (35pp.) – a funcionar sempre por ausência da personagem CATHERINE, motor nuclear escondido, implícito catalisador de todas as estórias.

Noah, o órfão, depois de várias experiências goradas com famílias adotivas, encontra, aos doze anos (a adolescência a substituir a infância), Patience e vivem como dois estranhos, habitando o mundo do teatro, até que o encontro com o padre Frank, excêntrico-reverendo guardião dos faróis das ‘Three Sisters’, em Cape Cod, vai permitir um interlocutor. Daí à descoberta do papel da paternidade biológica é o prodígio da escrita deste romance, que desfaz o papel do acaso com as imersões omniscientes em investigações selecionadas de lugares e tempos passados, piscar de olhos para as conexões do universo que só a escrita (a arte) pode dar a ler/ver.

Um mar tão doce onde as mágoas se afogam: ventre catártico de mãe real…