Opinião
Letras | Guardar para a colecção
O Museu da Inocência é um daqueles calhamaços que não deve ser temido. Oferece uma história de amor e uma grande viagem pela cidade de Istambul na década de 1970
Creio que já alcancei a idade para dizer “eu sou do tempo em que”.
Ora, eu sou do tempo da moda (e da loucura) das folhinhas de cheiro. Vinham em pequenos blocos de papel com ilustrações coloridas, recortados em forma de animais ou personagens dos desenhos animados. E cheiravam muito bem.
As folhas eram trocadas, quais cromos de caderneta, numa transação que procurava despachar o material repetido por nova e cheirosa mercadoria. E assim crescia a colecção, que era guardada como um tesouro. Depois vieram as coleções dos selos, das moedas, dos bilhetes, das pedras…
Há um colecionador em todos nós. As primeiras comunidades humanas já gostavam de colecionar objetos, numa natural relação entre a necessidade, o desejo e o deleite.
Os objetos de uma colecção extravasam a sua funcionalidade; merecem-nos uma especial proteção. Quando expostos, estão disponíveis para ser observados, para maravilhar, para imaginar, para recordar, para ensinar, para exprimir vaidade.
“O poder de um objecto jaz indubitavelmente nas memórias que guarda em si, e também nas vicissitudes da nossa imaginação e das nossas memórias” – assim se lê no livro no livro O Museu da Inocência, do escritor turco Orham Pamuk.
Kemal, personagem central da obra, fez da sua coleção uma missão e uma obsessão de vida. Reuniu durante anos objetos que o faziam lembrar Füsin, a mulher por quem se apaixonou. Ganchos de cabelo, brincos, objetos de cozinha e até beatas de cigarros foram sendo reunidos compulsivamente para darem lugar a um museu em memória da sua amada.
O Museu da Inocência é um daqueles calhamaços que não deve ser temido. Oferece uma história de amor e uma grande viagem pela cidade de Istambul na década de 1970, numa época em que a capital turca se embrulha num conflito identitário entre a tradição a as influências sociais e artísticas europeias.
Orham Pamuk coleccionou vários prémios literários, entre os quais o Nobel da Literatura, atribuído em 2006, reconhecimento o percurso do escritor que “em busca da alma melancólica da sua terra natal encontrou novas imagens espirituais para o combate e para o cruzamento de culturas”.