Opinião
Letras | A Selva Dentro De Casa de Possidónio Cachapa
E não se pense que são mais violentos os episódios da guerrilha do que a miséria, o desamparo, a ausência, a falta de tudo, a vida quase animal que se vivia ali naquele pedaço de Alentejo, como, aliás, no resto do país profundo daqueles tempos de 60
Aos poucos, e por muito que haja quem queira branquear, apagar mesmo das nossas memórias, o horror que este país viveu – apesar da censura e da desinformação perpetradas pelo regime – nos longos anos que durou a guerra colonial (1961-1974), a História – ciência de difícil definição – há de gravar os acontecimentos, os nomes, as datas, as causas, as consequências, as motivações, tal como nos foi ensinado nas escolas.
Muito mais fará – como sempre fez nomeadamente desde o aparecimento do romance – a literatura. A boa literatura. Aquela que se baseia nas memórias, nos relatos de família, nas vivências, nas leituras. Ainda que ficcionada e obedecendo às regras de estilo e da narratividade, é ela que nos informa, nos transmite, nos transporta para as realidades de tempos e de acontecimentos passados e que mal conhecemos. E fá-lo a partir dos sentimentos, dos pensamentos, dos sofrimentos das personagens e através da ambiência em que elas se moveram.
A Selva Dentro De Casa de Possidónio Cachapa (D. Quixote, 2024) é um desses bons exemplos. Trata-se de um romance sofrido, passado no Alentejo profundo e misérrimo, narrado em primeira pessoa por uma criança incondicionalmente apaixonado pelo jovem tio, o Quim, por quem é amado para além do dizível e que um dia o vê partir para a guerra, lá longe, em Moçambique onde tem de ir matar os ‘turras’, deixando-o completamente desamparado apesar da mãe, da avó, da tia Lurdes viverem ali com ele.
O romance desenrola-se narrando alternadamente o crescimento da criança (as brincadeiras, a ida para a escola, a brutalidade do professor, a saída do pai de casa e a amargura da mãe) e os episódios de guerra vividos pelo tio desde a partida de Lisboa no Niassa, até ao desembarque na deslumbrante cidade de Lourenço Marques, às emboscadas no mato, aos rebentamentos, às mortes dos ‘turras’, mulheres, crianças, “tudo o que mexe” e “dos nossos”.
Não é uma narrativa violenta, até porque nos é transmitida pela boca de uma criança; o que lemos é que é violento; o que é narrado é que é extremamente violento. E não se pense que são mais violentos os episódios da guerrilha do que a miséria, o desamparo, a ausência, a falta de tudo, a vida quase animal que se vivia ali naquele pedaço de Alentejo, como, aliás, no resto do país profundo daqueles tempos de 60. É, de facto, como diz o título: a Selva que não se vivia apenas em África, mas dentro das casas, nas famílias. “A selva escura”.
Desde a leitura de Esteiros, de Soeiro Pereira Gomes (notável neorrealista daqueles muitos que a crítica literária tão maltratou) que não me emocionava tanto com a descrição das tristes condições de vida deste povo, destas mulheres, destas crianças.
Impossível ignorar a dedicatória que introduz a obra: “Este livro é dedicado a todos aqueles que adormeceram para sempre, entre palmeiras distantes, imaginadas por nós a preto-e-branco, e que nunca pediram para ver. (…) Mas, também, a todos os homens, mulheres e crianças que ao mesmo tempo viviam uma outra guerra dentro das suas casas. (…)”