Opinião

Joseph Cornell: viver dentro da caixa

5 ago 2021 15:45

Devastado pela morte do irmão deficiente em 1965 e pela da mãe dois anos depois, ainda assiste indiferente à consagração da sua obra

Dois dias antes de morrer, Joseph Cornell (1903-1972), um dos mais originais artistas americanos do século XX, escrevia no seu diário: “Gratidão, reconhecimento e memória de algo que pode perder-se muito facilmente”.

Resumia, assim, aquilo que foi a sua vida e obra de constante assombro perante o mundo.

Joseph Cornell nasceu em Nyack, nos EUA. Viveu os anos da infância junto de uma família apaixonada por música, dança e literatura.

O pai, um exuberante designer de têxteis, morreu prematuramente deixando a família em situação económica precária.

A mãe viu-se obrigada a partir para Nova Iorque, onde passou a viver com os filhos no bairro operário de Queens.

Joseph, inscrito pela mãe na prestigiada Phillips Academy onde nunca se sentiu integrado, abandona a escola sem qualquer diploma.

Sucedem-se empregos indiferenciados que lhe permitem deambular pela cidade, frequentar museus, alfarrabistas, salas de cinema e feiras de velharias, e começar, assim, a construir um pequeno museu privado formado por livros raros, libretos, fotografias antigas, postais, conchas, bobinas, rolhas… (Cornell viveria em casa da mãe até ao fim dos seus dias mesmo após a morte dela e do seu adorado irmão Robert, que sofria de paralisia cerebral e de quem sempre cuidou).

Sem educação artística formal, Cornell aproxima-se da ideia surrealista de que arte pode ser também a criação de uma obra a partir de objectos reais estranhamente combinados.

Encontra, então, os três meios através dos quais melhor se expressará artisticamente – a colagem, as famosas shadow boxes e os filmes antigos que encontra e reedita – trabalhos que o levarão a cruzar-se com os surrealistas e a cultivar amizades com Marcel Duchamp, Andy Warhol ou Mark Rothko.

Na década de 40, Cornell passa a dedicar-se a tempo inteiro à construção das suas caixas “poéticas”.

Sozinho, na cave, produz um universo privado de pequenos compartimentos com tampas de vidro dentro dos quais concebe cenários com artefactos dispostos sobre o que se assemelha a um palco.

Como um entomologista, junta de forma obsessiva objectos que reflectem os seus principais interesses – a ciência, a música, o teatro, a dança, a ornitologia e a paixão pela cultura europeia.

E no ambiente artisticamente controlado das caixas cria sofisticadas combinatórias que reflectem e fixam a sua rara sensibilidade e o seu deslumbramento com o mundo e a sua memória.

Cornell nunca se vinculou a nenhuma galeria.

Apesar de ser profundamente romântico (nunca se casou) preferia oferecer as suas criações a mulheres que admirava mas com as quais apenas conseguia relacionar-se platonicamente (resultado do opressivo domínio maternal).

Manteve, contudo, amizades profundas com mulheres como Susan Sontag, Marianne Moore e Yayoi Kusama.

Apesar da popularidade crescente das suas caixas, Cornell optou no final da sua vida por se dedicar ao cinema e à colagem ainda que sempre movido pela alegria da descoberta da beleza no acaso.

Devastado pela morte do irmão deficiente em 1965 e pela da mãe dois anos depois, ainda assiste indiferente à consagração da sua obra.

Na sua cave isola-se numa espécie de caixa cujo vidro o afasta dos amigos que o visitam e das mulheres com quem continua a não estabelecer contacto físico sucumbindo, poucos anos depois, a uma paragem cardíaca.

Nas últimas entradas dos seus diários prevalece, todavia, até ao derradeiro dia de vida, o deslumbramento pelos detalhes que o rodeiam e a candura de se deixar comover pelo mundo.