Opinião
Foi bom, enquanto durou!
Ainda continuam a dar-se chutos na bola, ainda há tribalismo, mas o que importa agora é... o dinheiro
O futebol é um instigador de paixões intensas. Um jogo simples, com onze pessoas de cada lado usando os pés e a cabeça para fazer passar a bola por um retângulo. Aos desafios atlético e técnico, juntou-se mais tarde o tático – afinal pessoas em colaboração conseguem melhores resultados do que puxando cada um para seu lado.
Depois veio o lado tribal: formam-se clubes com adeptos que os apoiam, criam-se equipas nacionais que pretendiam representar o país. Foi uma nova faceta do “nós contra eles”. Há uns anos, o futebol entrou noutra fase. Num mundo pós-capitalista, pós-verdade, pós-Covid, nasceu o pós-futebol.
Ainda continuam a dar-se chutos na bola, ainda há tribalismo, mas o que importa agora é... o dinheiro. O pós-futebol é um negócio de entretenimento – já não é um desporto. E, como tal, importa apenas “criar conteúdo” para servir aos consumidores e “gerar vitórias” para aumentar o envolvimento (engagement) com a marca.
Inventam-se competições, aumenta-se o número de jogos, discutem-se boatos, transmitem- -se conversas de café na televisão. E celebram-se milhões gastos em contratações, festejam-se balanços equilibrados, aplaudem-se os artistas da contabilidade. É o pós-futebol total. Nas últimas semanas, tornou-se mais evidente que o negócio se sobrepõe a tudo o resto.
Depois de um campeonato mundial no Qatar, a Casa de Saud resolveu fazer do “futebol” a ferramenta de limpeza de imagem do regime totalitário e ultraconservador que impõe à Arábia Saudita. Recrutou, para isso, profissionais desta atividade com créditos firmados, pagando-lhes valores, literalmente, incompreensíveis para os comuns mortais.
E, num passe de magia, deixou de haver ditadura, perseguição às minorias, financiamento a terroristas, mulheres subjugadas: apenas há um simpático país, com dunas e um estimulante campeonato – que será ganho pelo clube preferido do Rei. Certamente por tudo isto, os cabecilhas das organizações futebolísticas sentem-se à margem de qualquer lei ou norma social. Mesmo que todo o mundo inteiro veja em direto que são desrespeitadas pessoas, a cultura de impunidade impede que reconheça o comportamento incorreto e se retrate (sim, estou a falar de Rubiales).
Dizem que os amores de Verão se enterram na areia. São mágicos, porém efémeros. Também o futebol – que já estava moribundo – se enterra na areia, com a ajuda de milhões de petro-dólares. Foi bom, enquanto durou! Agora restam as memórias que nos deixou para nos ajudar a ultrapassar o embaraçoso estertor que vemos.