Opinião
Face-to-face?
A informação colhida e manipulada pelos algoritmos depende de humanos desconhecidos e não escrutináveis
As redes sociais substituíram parte da socialização que muitos de nós fazíamos face-to-face.
Os mais novos já nasceram publicados numa rede social qualquer e vivem embrenhados nessa selva digital, de forma mais ou menos consciente.
Nos últimos tempos vieram a público os relatos de Frances Haugen sobre o funcionamento interno do Facebook, local onde até então trabalhou.
Uma das raras engenheiras de software naquele meio (no feminino, entenda-se), com 37 anos, que contava já com uma passagem pela Google, Yelp e Pinterest, um MBA em Harvard. Profissionalmente qualificada no funcionamento dos algoritmos. As descrições são tenebrosas.
Para quem tem o mínimo de conhecimento do funcionamento de uma democracia e do mercado das suas empresas, há perguntas que saltam à vista nesta era da “nuvem” e do algoritmo.
Resgatei parte de um artigo que escrevi em co-autoria, publicado no DN, onde essas inquietações me mereceram destaque: “Que mão embala o algoritmo? Que qualificações tem? É escrutinável sequer? Que normas cumpre? E quem as dita? As empresas privadas cingem-se na prática a preceitos feitos por si? Quem está do outro lado da linha? Podemos não saber quem está do outro lado da linha? Podemos ficar reféns de cowboys?”
Aos dias de hoje, depois da publicação das denúncias no Wall Street Journal, foi suspenso o projecto que o Facebook mantinha de criação de um Instagram Kids.
A informação colhida e manipulada pelos algoritmos depende de humanos desconhecidos e não escrutináveis. Um faroeste onde as regras éticas e democráticas parecem não se aplicar, sobretudo sem qualquer escrúpulo no que diz respeito ao acesso por crianças e jovens.
Cada like, clique e segundos de atenção numa publicação rendem euros, dólares ou criptocoisas, arreigados que estão os sistemas a processar tendências, a alterar percepções, hábitos e consumos.
Podia até ser inconsequente ou inocente. Mas não é, não somos robots imunes.
Quem lida com adolescentes em escolas sabe o efeito perverso que pode ter uma rede social, o cyberbullying é tema ultra sensível e não necessariamente igual ao bullying entre pares, mas pior.
E mesmo em tenra idade, o conhecimento adquirido quando se forma identidade é importante que seja apresentado com cuidado e filtro, à medida que a capacidade cognitiva vai aumentando.
Os efeitos na saúde mental são avassaladores, da depressão até à viciação e dependência. Acrescento uma que se tem tornado tramada, a desinformação nas nossas vidas, com a ignorância a ser confundida com opinião e onde a ciência tem vindo a ser desacreditada por qualquer partilha de um qualquer curioso.
Constato ainda que as pessoas ficam ignorantemente agressivas, transfiguradas face ao que lhes conhecemos no convívio pessoal.
Em Portugal as estatísticas dizem-nos que passamos mais de duas horas por dia nisto, bem acima da média europeia. De uma forma ou de outra, todos estamos nas redes sociais, não há inocentes nisto.
Mas pode haver regras, do algoritmo à nossa própria utilização. Vale a pena começar a levar isto mais a sério.