Opinião
Cornaca – o guardião de elefantes
Até chegar à capa final do livro foram muitas as imagens que ensaiámos
Chegar à concepção final da capa de um livro é um processo longo e misterioso que muitas vezes não se compatibiliza com o tempo rápido que a produção de uma obra hoje exige. Os prazos, esses implacáveis ditadores que nos deixam pouco tempo para ler, pensar e dialogar com o texto e a sua possível representação, empurram-nos algumas vezes para soluções intermédias que, não desmerecendo a obra, não a dizem na sua forma ideal.
Entendo, sempre entendi, a capa de um livro como mais um degrau de interpretação do texto. Uma achega, uma proposta mais para os caminhos que a leitura por si só abre. Uma nova porta que anuncia mais uma interrogação, uma nova hipótese de sentido.
O romance Aqui Onde Canto e Ardo de Francisco Mota Saraiva, galardoado com o prémio literário revelação Agustina Bessa Luís 2023, foi um desses casos simultaneamente mágicos e demorados. Um romance surpreendente pela maturidade da voz literária do autor, pelo engenho na criação das personagens e pela originalidade da arquitectura narrativa.
As personagens principais do romance são oito - o Cornaca que vive rodeado de elefantes reais e imaginários e que apesar de andar de navalha de ponta e mola em riste insiste em viver entre o sonho e a realidade; a Actriz, uma mulher cega e envelhecida que não abandona o desejo de pisar um palco; a Bailarina, filha da Actriz, que casa sem vontade; o pirata Albino, cujas pernas ficam na guerra colonial em África; o Cesário, casado com a Bailarina, que guarda segredos fatais; Jorge que tem uma pele demasiado escura para aquilo que a sua alma consegue suportar; o Africano que carrega todo o mal e se antecipa ao Diabo; e, por fim, Rosália, o fio de luz subterrâneo a toda a narrativa e que poucos conseguem compreender – uma mão estendida ao leitor a quem compete intuir as suas razões. A personagem redentora da história que espelha uma espécie de humanidade em risco.
Até chegar à capa final do livro foram muitas as imagens que ensaiámos. Percorremos os quadros das bailarinas rotundas de Toulouse Lautrec, passámos por uma certa solidão dos palcos de um dos quadros de Edward Hopper, andámos pelo circo de Seurat e chegámos até ao fogo do pintor belga Paul Delvaux.
E eis que numa destas longas pesquisas em busca da imagem perfeita surgem os elefantes de Salvador Dalí, um trabalho de 1948 que o pintor catalão fez para ilustrar uma peça de William Shakespeare intitulada “Como Gostais”. O encaixe perfeito na cor, numa certa estranheza e mistério que o romance encerra e naquela espécie de ambiente onírico que o Cornaca habita na companhia dos seus elefantes, avivando afinal o poder da imaginação e da perseguição dos sonhos.
Esta capa dava uma história até porque foram muitas as peripécias até conseguir chegar ao titular dos direitos da imagem, mas toda ela contribui para esse degrau a mais na leitura do texto do Francisco Mota Saraiva que é uma verdadeira revelação literária. Se puderem aceitem o convite para descobrir o extraordinário romance por detrás da capa.