Editorial

Cobardes na horta

7 set 2023 08:20

Têm-nos chegado cada vez mais relatos de furtos em hortas, um acto desumano contra a memória e persistência de quem trabalha a terra

No recanto de uma aldeia, nos arredores de uma qualquer zona urbana da nossa região, Maria, uma idosa de coração dócil e movimentos lentos, carrega sozinha, todos os dias, os garrafões de água que usa para manter viçosa a sua pequena horta. Dia após dia, engana as dores nas pernas e as ‘pontadas’ nas costas com a felicidade de ver crescer as suas alfaces, couves, tomates ou pés de feijão. É ali que encontra a sua paz, que se sente em harmonia com o ciclo da natureza, e de onde procura re-tirar também algum alimento, uma importante ajuda face ao magro orçamento que a reduzida reforma lhe proporciona.

A cobardia de gente sem escrúpulos, porém, tem abalado a tranquilidade de Maria, e de tantos outros idosos que vivem em áreas rurais. Têm-nos chegado cada vez mais relatos de furtos em hortas, um acto desumano contra a memória e persistência de quem trabalha a terra como se cada hortaliça tivesse uma história para contar. Um crime que raramente, ou quase nunca, chega ao conhecimento formal das autoridades policiais.

A verdade é que os efeitos destes furtos, muito para lá do valor material, podem revelar-se devastadores. A sensação de vulnerabilidade e insegurança aumenta, a confiança nas relações de vizinhança fica comprometida, cria-se uma atmosfera de medo e desconfiança e os idosos afectados tendem a tornar-se mais reticentes em interagir com os outros, levando a um maior isolamento social. Invariavelmente, o receio constante de verem a sua propriedade invadida, de sentirem que podem perder alguns dos seus poucos recursos, interfere com a sua qualidade de vida, com a sua saúde mental e emocional.

Se os autores destas pilhagens não fossem cobardes, em vez de arrancarem à má fila e pela calada da noite o fruto do trabalho de quem merece empatia e compaixão, dignidade e respeito, estendiam-lhes a mão para ajudar a cultivar essas mesmas hortas. E ainda contribuíam para reforçar a agricultura de subsistência e a resiliência da comunidade em tempos difíceis. Mas isso era se tivessem coragem.