Opinião

Cinema | Rebobinar

14 fev 2025 07:23

Não havia streaming nem video-on-demand, mas havia clubes de vídeo e cassettes VHS. Havia rebobinadores, filas de caixas alinhadas com capas de design terrível e preços especiais para alugueres de curta duração

Recordo-me, com cada vez maior frequência e não menor saudade, de quando éramos despreocupados e dávamos como garantido o tempo que se desperdiçava. Esse tempo livre, aliás, sobejava proporcionalmente à falta de dinheiro para o gozar. Talvez por isso, ou precisamente por isso, tivéssemos criado o hábito de nos juntarmos naquela mesa de esplanada, onde sabíamos que havia alguma probabilidade de nos fiarem uma ou outra rodada. Quem chegava, sem cerimónia ou parcimónia, levava a mão ao bolso da frente das calças, de onde retirava, depois, o punho fechado, para o abrir sobre a mesa e assim deixar cair o conteúdo do bolso. Mais moedas que notas, sempre e sem exceção nem surpresa. Era dinheiro que, nesse instante, passava a ser propriedade de todos e assim seria partilhado, em formato líquido, com a mesma falta de preocupação pela equidade com que se distribuíam também cigarros e sorrisos.

Trocavam-se ideias, sugestões e conselhos sobre música e cinema como quem troca cromos, e raramente era fácil chegar a um consenso ou algum patamar aceitável de clareza, sem internet para tirar dúvidas e com o grau de dispersão etílica a aumentar rapidamente. Ainda assim tínhamos muitas certezas, particularmente aquelas que a juventude e a ignorância potenciam, e defendíamos afincadamente pontos de vista em que sabíamos não acreditar ou que estávamos disponíveis para destruir em troca do próximo cigarro.

O cinema era às quintas ao final da tarde, quando o orçamento chegava para isso e a ocasião se proporcionava. Cinema, no auditório, no escuro, era apenas assim que era entendido, mesmo quando, às vezes, éramos só uma meia dúzia de espectadores na sala – se calhar há coisas que não mudam. Nos outros dias os filmes eram outros, porque não havia streaming nem video-on-demand, mas havia clubes de vídeo e cassettes VHS. Havia rebobinadores, filas de caixas alinhadas com capas de design terrível e preços especiais para alugueres de curta duração.

Contas feitas, o caminho construía-se vendo muitos (muitos) filmes maus, alguns razoáveis e uma mão cheia de filmes bons para, ocasionalmente, descobrir uma pérola que nos faz ansiar pelo reencontro àquela mesa de esplanada, no dia seguinte, e partilhar o achado. No processo, criar um espírito crítico e uma opinião independente, sem elitismos e livre de outras influências que não a daquele pequeno grupo disposto a trocar as convicções mais irredutíveis por um cigarro e uma imperial.

O único imperativo: no final, rebobinar para devolver.