Opinião
Cinema | Que faço eu aqui, com as mãos manchadas de sangue?
Bring Them Down, estreia de Christopher Andrews em longas-metragens, é um filme emocionalmente denso, cheio de camadas psicológicas e silêncios muitas vezes mais reveladores que os próprios diálogos
Tenho sido agradavelmente surpreendido sempre que opto por arriscar ver um filme irlandês. Será talvez um sentimento muito pessoal e que não implica, obviamente, uma generalização, mas a linguagem e abordagens que usualmente caracterizam as produções gaélicas raramente me deixam desiludido. Foi assim com o fantástico Os Espíritos de Inisherin (The Ghosts of Inisherin, 2022) de Martin McDonagh, e (o não tão fantástico, mas igualmente interessante) Bring Them Down (2024).
Ainda sem título em português, Bring Them Down, estreia de Christopher Andrews em longas-metragens, é um filme emocionalmente denso, cheio de camadas psicológicas e silêncios muitas vezes mais reveladores que os próprios diálogos. Atualmente está em exibição no IndieLisboa, naquela que será a melhor oportunidade de ver o filme no grande ecrã.
A ação decorre numa área rural do interior da Irlanda, onde Michael (Christopher Abbott) vive com o pai, Ray (Colm Meaney). Os O’Sheas são pastores de ovelhas há várias gerações, como, aliás, uma boa parte dos seus vizinhos e Ray, ainda que envelhecido e com a mobilidade condicionada, não deixa de relembrar constantemente o filho, agora responsável por todo o trabalho, que o seu rebanho é o mais respeitado e valorizado da região, algo aparentemente incontestado pela comunidade.
Um incidente que noutro contexto poderia ser banal — o desaparecimento de dois carneiros reprodutores dos O’Sheas — desencadeia um conflito com a família vizinha, reacendendo velhas mágoas, sobretudo entre Michael e Jack (interpretado por Barry Keoghan, a roubar o protagonismo como vem sendo hábito neste jovem ator). Jack é filho de Gary (Paul Ready) e Caroline (Nora-Jane Noone) cujo passado está indelevelmente marcado por uma anterior e complicada relação com Michael. O episódio com os carneiros acende o curto rastilho que precipita o embate entre as duas famílias.
A narrativa alterna entre as perspetivas de Michael e Jack, acentuando as suas motivações e tornando difícil uma análise e um julgamento moral unilateral das ações das personagens, cada um atormentado pelos seus próprios traumas. A atmosfera do filme deve tanto ao desempenho dos atores como à paisagem desta Irlanda rural, com os seus tons frios, céus pesados e uma orogenia cuja dureza parece moldar os espíritos dos habitantes.
Nem sempre genial e algumas vezes desconexo, Bring Them Down não pretende ser um filme fácil, mas vale acima de tudo por encontrar uma forma de comunicar o drama psicológico e o sofrimento traumático das personagens de forma profunda e coerente. Uma estreia sólida, artisticamente ambiciosa, que afirma Christopher Andrews como um nome a seguir no cinema europeu.