Opinião

Cinema | O Terceiro Assassinato, de Koreeda

9 fev 2024 09:00

Revela, subtilmente, que o sistema de justiça, pelo menos aos olhos dos advogados, é, antes de tudo, um campo de jogo simbólico. Um jogo de xadrez

Bem, acho que já não é segredo para ninguém que Koreeda é dos meus realizadores favoritos. E, sinceramente, não falo muito dele para não maçar os meus caríssimos leitores. No entanto, também tenho vindo a verificar que Koreeda não é assim tão conhecido quanto isso. Portanto, hoje abordarei mais um dos seus filmes. Desta feita, um completamente (ou quase completamente) diferente. Como assim? Ora, Hirokazu Koreeda – conhecido por filmes que abordam a temática da natureza das relações familiares – tentou algo diferente em 2017: um drama de tribunal.

Como, aparentemente, não há dúvidas sobre o assassino – devido à confissão de Misumi, O Terceiro Assassinato (Japão, 2017) não aborda, inicialmente, a questão típica de: “culpado ou inocente?”. A narrativa apresenta-se ao contrário: em mostrar a própria maneira como os advogados jogam com a lei para abrir uma possibilidade de ganhar um caso. Desta forma, O Terceiro Assassinato revela, subtilmente, que o sistema de justiça, pelo menos aos olhos dos advogados, é, antes de tudo, um campo de jogo simbólico. Um jogo de xadrez.

Mais concretamente, Shigemori deve, para ter um caso, mudar a acusação de homicídio para roubo premeditado. Ou seja, o propósito inicial de Shigemori é encontrar provas que gerem significantes capazes de colocar em dúvida ou ressignificar a suposta veracidade da acusação. Ao juntar os significantes, o advogado pretende construir uma narrativa em torno do crime. A escolha e a forma de estruturar os significantes na narrativa do crime visa, neste caso, tão somente diminuir ao máximo a punição de Misumi. Mas a narrativa construída, como fica claro em O Terceiro Assassinato, também é estruturada por lacunas – significantes desconhecidos – e mesmo com mentiras. E é pela centralidade da mentira, tão belamente evocada pela composição cinematográfica da narrativa, que Koreeda consegue questionar, criticamente, o poder da confissão; a utilidade da pena de morte; e o valor da verdade dentro do sistema jurídico japonês.

É através de um enquadramento sereno, mas um pouco distante da narrativa, enquanto tal, que Koreeda consegue suspender o seu próprio julgamento e, consequentemente, permite ao espectador fazer o mesmo. Mas, claro, isso não significa que a subjetividade de Koreeda como realizador não esteja presente.

O Terceiro Assassinato pode não ser o melhor de Koreeda, mas é um relato inquietante e poderoso dos aspectos problemáticos que marcam o sistema legal do Japão. Mesmo com o seu final pouco dramático, a narrativa lindamente estruturada deixa os seus espectadores com uma sensação desconfortável, pois são forçados a confrontar o fato injusto de que o jogo de significantes e a imagem, vistos pelo Outro Social, é mais influente para o processo judicial do que a descoberta da Verdade.