Opinião
Cinema | O “Sem Coração”, que me deixou sem fôlego
Está tudo lá: a confusão, a perda da inocência, a crueza da realidade e em como, na grande parte das vezes, e para a maior parte das pessoas é, simplesmente impossível fugir ao destino
“É possível ter medo de uma coisa que se quer muito fazer?”
Estes dias tenho andado por Seia, enquanto jurada da categoria de curtas, médias e longas-metragens em língua portuguesa, da 30.ª edição do CineEco - Festival Internacional de Cinema Ambiental da Serra da Estrela. Dias estes que têm sido cheios de histórias novas, e reflexões filosóficas mais jovens ainda.
Mas isto para chegar onde? Para chegar que hoje, não vos falo de clássicos incontornáveis do cinema, mas de um filme bem recente. Um em que tropecei no sábado e que, até ao momento, não deixei de pensar nele.
Falo da longa-metragem Sem Coração, realizada por Nara Normande e Tião, que está nos cinemas portugueses pelas mãos da Nitrato Filmes, a partir de 17 de outubro.
Estamos no Verão de 1996, no litoral de Alagoas (Brasil). Tamara (Maya de Vicq), de 14 anos, está prestes a deixar a vila onde nasceu e os amigos com quem cresceu, para se mudar para a capital. Um dia, ouve falar de uma rapariga (Eduarda Samara) que os miúdos gostam de atormentar e a quem chamam de Sem Coração devido a uma cicatriz que tem no peito. Quando as duas se cruzam pela primeira vez, Tamara fica fascinada.
O filme, que é a estreia em longas-metragens dos realizadores, junta a história de duas curtas-metragens de sucesso de ambos: Guaxuma (2018), de Nara – uma animação das suas memórias de infância; e Sem Coração (2014) de Nara e Tião.
Admito que tenho algum fascínio por filmes que retratam o final da adolescência. Este período (que agora até já é um género cinematográfico, coming of age) que aborda a transição da zona cinzenta e algo suspensa onde o persistente paraíso da infância a que nos agarramos, se entrelaça com desejos confusos de explorar o futuro próximo; a descoberta dos sentimentos e da sexualidade; a crescente compreensão da passagem do tempo e a consciência mais premente do mundo que nos rodeia com as suas possibilidades, diferenças sociais e perigos.
Sem Coração fala disto tudo e é tudo intenso e pacífico ao mesmo tempo. Contado desta forma sublime, crua, melancólica e quase silenciosa que só o cinema brasileiro nos consegue entregar, atrevo-me a dizer. Como uma estória contada, em sussurro ao ouvido, que nos faz sorrir, chorar e crescer uma raiva intensa no peito. Está tudo lá: a confusão, a perda da inocência, a crueza da realidade e em como, na grande parte das vezes, e para a maior parte das pessoas é, simplesmente impossível fugir ao destino.
Penso muito em como a mudança de Tamara para Brasília é uma metáfora para a sua própria viagem interna de encontro à vida adulta. “É possível ter medo de uma coisa que se quer muito fazer?” Acho que é impossível não nos identificarmos com estas dúvidas.