Opinião

Cinema | Caminhos de ferro

17 jan 2025 08:47

Trains é totalmente construído a partir de imagens de arquivo, num processo que consumiu dez anos da carreira de Maciej J. Drygas, e o levou a trabalhar com 98 arquivos de diversas partes do mundo

There is plenty of hope.
An infinite amount of hope.
But not for us.”
Franz Kafka

É com esta citação de Kafka, sobre um simples fundo negro, que se inicia uma contemplativa travessia do século XX, magistralmente conduzida pelo realizador Maciej Drygas através de Trains (Pociągi, 2024), filme vencedor da mais recente edição do IDFA (International Documentary FilmFestival of Amsterdam) – certame de referência do cinema documental mundial.

Se o comboio é um inequívoco símbolo de movimento e de mudança, esta pode por vezes revelar-se trágica, como a História já o provou de forma recorrente; levando a que a alegria da viagem se transforme lentamente numa espécie de maldição da Humanidade.

Esta dualidade e fatalidade são vincadas aos primeiros minutos de filme, em que, da cena de abertura, datada do início do século passado – e onde se exibe a hercúlea tarefa da construção de enormes locomotivas a vapor – se passa para imagens das primeiras viagens nestes comboios, e, num mesmo fôlego, se observa como a alegria dos passageiros destes gigantes de ferro dá lugar às pesadas e dramáticas movimentações das tropas da Primeira Grande Guerra.

Trains é totalmente construído a partir de imagens de arquivo, num processo que consumiu dez anos da carreira de Maciej J. Drygas, e o levou a trabalhar com 98 arquivos de diversas partes do mundo, ainda que “apenas” utilize material de 45 dessas fontes, naquele que é o seu mais dispendioso projeto até ao momento. Trains não tem uma única palavra, e o percurso monocromático destes comboios ao longo da história da século XX é inteiramente suportado pelo desenho sonoro de Saulius Urbonovicious, sobre excertos da composição Compartment 2, Car 7, de Paweŀ Szymański.

Esta descrição poderá fazer levantar o sobrolho dos mais céticos, não sem alguma razão, há que convir. Trains não é um filme fácil nem convencional e, como naturalmente se antecipa, ao longo dos seus 81 minutos de duração apresenta algumas imagens violentas e chocantes, que não procuram esconder nem camuflar o lado mais sombrio e repugnante da espécie humana. Ainda que de difícil “digestão”, o segredo para a genialidade de Trains passa também pela montagem e edição de Rafalŀ Listopad, igualmente premiadas no IDFA.

O tempo passa, padrões repetem-se, mas tal como nas linhas férreas, existe sempre uma bifurcação que permite escolher um caminho diferente e, no limite, prolongar indefinidamente a viagem; e é esta proposta alegórica que Trains tem para apresentar e que fazem dele um dos melhores filmes de 2024.