Opinião

Cinema | Apagões e outras fissuras

2 mai 2025 11:51

Não é por acaso que O Melhor dos Mundos nos conta uma história a partir de dentro: de casas, de relações, de corpos. A ameaça está lá fora, mas é por dentro que ela reverbera

Escrevo estas linhas à luz de velas, rodeada pelo silêncio estranho de eletrodomésticos mudos e ecrãs apagados. Esta segunda-feira, dia 28 de abril, ao final da manhã, um apagão geral mergulhou a Peninsula Ibérica numa escuridão invulgar e nunca antes vista. Ficámos horas sem eletricidade. Num tempo tão dependente da energia, estas interrupções abruptas desorientam-nos. Mas mais do que desconforto, o que senti foi inquietação.

Lembrei-me, automaticamente, de um filme português que vi em outubro passado, durante a minha participação como jurada no CineEco – Festival Internacional de Cinema Ambiental da Serra da Estrela: O Melhor dos Mundos, de Rita Nunes.

Nesta que é a segunda longa-metragem da realizadora, e que foi construída com base científica, Lisboa está sob ameaça de um grande terramoto. A tensão sísmica não se vê, mas sente-se – tal como o medo, a paralisia e a solidão que atravessam as personagens.

A protagonista, vivida por Sara Barros Leitão, vive num prédio em ruínas, tanto físico como emocional. O edifício, prestes a colapsar, torna-se metáfora de uma cidade – ou de um país – que varre para debaixo do tapete os sinais do colapso iminente. A eletricidade, no filme, é intermitente. A comunicação também. A cidade treme, mesmo quando não se move.

Durante o apagão de ontem, ouvi pela janela o rumor de passos desconcertados nas escadas, senti a ausência dos ruídos de fundo que normalmente mascaram os nossos receios. A escuridão devolveu-me a memória do filme. E o filme devolveu-me uma consciência aguda da fragilidade do mundo que habitamos.

Não é por acaso que O Melhor dos Mundos nos conta uma história a partir de dentro: de casas, de relações, de corpos. A ameaça está lá fora, mas é por dentro que ela reverbera.

Vivemos como se o colapso estivesse sempre adiado. Como se nada fosse, realmente, acontecer. Mas, às vezes, basta um “apagão” para percebermos que a ameaça, afinal, já mora connosco.