Opinião
Cinema e TV | Isto é uma coisa a ver: Fleabag
Assumindo-se como comédia, rapidamente se percebe que a história de Fleabag é, na realidade, uma história de perda e de luto
Fleabag é uma série britânica de 2016, escrita e protagonizada por Phoebe Waller-Bridge, que conta com a participação de Olivia Colman, Andrew Scott e Kristin Scott Thomas. Disponível na Amazon Prime, a série tem duas temporadas, com seis episódios de cerca de 20 minutos cada. Foi a grande vencedora da edição dos Emmys de 2019, ano em que foi para o ar a segunda temporada.
Assumindo-se como comédia, a série narra com humor (muitas vezes negro) as aventuras de uma jovem londrina, dona de um porco da índia fêmea e de um café temático à beira da falência. A sua vida financeira, familiar, sexual e afetiva é rica em mal entendidos, ambiguidades e desilusões, que ela vai partilhando em confidência com o espetador, tornando-o cúmplice solidário das suas desventuras. Mas rapidamente se percebe que a história de Fleabag é, na realidade, uma história de perda e de luto. A grande questão, formulada pela própria personagem, é a de saber para onde vai o amor que temos por alguém quando essa pessoa morre, de como continuar a viver quando os pilares que nos sustentam parecem ruir.
A essa luz, cada episódio constitui uma reflexão sobre os caminhos que trilhamos quando perdemos o que somos, principalmente se o que somos se define a partir da forma como o outro nos vê e nos aceita. Não se trata da perda do amor romântico, mas de um outro amor, mais profundo e incondicional, que apenas a amizade pode garantir e que não se perde sem culpa.
A culpa que encerra a primeira temporada poderá ser a razão pela qual a temporada seguinte introduz uma personagem capaz de a redimir: um padre nada convencional, com uma fobia por raposas e um gosto por gin tónico, que vê a personagem principal como até então apenas o espetador conseguira.
Esta temporada, também ela acerca de amor, abre as portas a um conjunto de novas reflexões sobre o sentido da vida, da morte e da religião, abordadas com humor suficiente para fazer rir e seriedade suficiente para fazer sentir. Particularmente interessante é o episódio em que a personagem principal (a quem nunca é dado nome) se confessa e expressa o desejo de que alguém lhe diga o que vestir, de que gostar, o que odiar, com o que se revoltar, em que acreditar, quem amar e como dizer esse amor; alguém que lhe diga como viver a vida porque sozinha parece ter falhado e ser incapaz de deixar de ter medo.
Sendo protagonizada principalmente por mulheres, o ângulo da série não pode deixar de ser feminino. Como diz Belinda (Kristin Scott Thomas) num dos episódios, as mulheres nascem com um útero que lhes garante uma dor estrutural que carregam durante a vida toda. Esta dor matricial, que os homens não têm e que procuram fora de si, é avançada como hipótese de explicação para as diferenças no sentir e no viver de homens e mulheres. Mas em Fleabag, todas as relações oscilam entre o desejo de proximidade e a incapacidade de a manter. Talvez porque, como diz o padre, amar não é para fracos.
O amor é doloroso, assustador, torna-nos egoístas, cruéis, faz-nos dizer e fazer coisas que julgaríamos nunca ser capazes de dizer ou fazer. É tudo o que queremos e é um inferno quando o conseguimos. Mas é também a nossa única esperança. E é com uma mistura de desencanto e esperança que Fleabag encerra, com um último olhar cúmplice para o espetador e a música “This Feeling”, dos Alabama Shakes, que garante que tudo acabará por ficar bem.