Opinião
Artes Visuais | Manuel João Vieira é para levar a sério
Tamanha superficialidade está apenas a seduzir-nos para um confronto de algo com uma profundidade enorme
Pintor, músico, professor, actor, realizador, escritor, comediante e candidato a Presidente da República. Deparei-me com MJV pela primeira vez em finais dos anos oitenta / início dos anos noventa, num programa de música que dava aos domingos à noite, chamado Pop Off. Na altura, só havia dois canais de televisão pública e quando no canto superior do televisor se via uma cruzinha branca a piscar, significava que no outro canal estava para começar um programa novo. O meu pai gostava de ver o Domingo Desportivo no canal um, mas no seu decorrer, a grande parte das vezes adormecia no sofá. Era nestes momentos que eu e o meu irmão lhe tirávamos cirurgicamente o comando das mãos e esperávamos a mágica cruzinha branca. Baixávamos gradualmente o volume e quando ela aparecia mudávamos de canal como quem corta o fio vermelho do cronómetro da bomba.
Se tudo corresse bem, a doce recompensa valia o esforço e risco. Apresentavam bandas como os Mão Morta e os Ena Pá 2000, e foi ao som do video de “És cruel” que o MJV me fez chorar a rir pela primeira vez. Perto duma década depois estudei o contributo do grupo de artistas Homeostética, para o panorama artístico do Portugal dos anos oitenta, e lá estava novamente o Manuel. Percebi que este autor em particular, dentre dezenas que prometiam uma carreira interessante, tinha o que era preciso para eu olhar para ele como uma figura de autoridade. Daí em diante nunca mais lhe perdi o rasto.
Desde então vi-o a deambular pelos corredores da escola que frequentei, vi-o apresentar programas televisivos sobre pintura, inúmeros concertos, exposições em museus e galerias. Este ano tem estado a fazer campanha para candidatar-se a Presidente da República pela terceira vez, a apresentar o seu brilhante álbum novo em concertos ao vivo e tem pinturas a serem mostradas numa exposição no CAM da Gulbenkian. O estilo inconfundível com que trabalha o burlesque* está à flor da pele em tudo o que faz, e leva-me a pensar profundamente assuntos duros.
É cómico e bem lido, é bom observador e demonstra mestria nos ofícios a que se propõe. Extrapola a partir dum leque de referências gigante, que vão do mais erudito ao mais iletrado. Eu curto bué pintura e comédia, MJV é um excelente pintor e tem um sentido de humor acutilante. O percurso tem sido extraordinário e anseio o que ainda está para vir. Eu sei que tudo parece muito trivial no trabalho do Manuel, e há numa camada muito superficial, mas acreditem em mim quando digo que tamanha superficialidade está apenas a seduzir-nos para um confronto de algo com uma profundidade enorme. Manuel João Vieira é para levar a sério.
* estilo de sátira ou paródia que usa humor para gozar ou ridicularizar temas sérios