Opinião

Artes visuais | Lisboa em alto nível

11 jul 2025 11:01

Jeff Wall é daqueles artistas que se estuda, que se revê, e que se discute

Quem tiver oportunidade de usar uma manhã ou tarde para se cultivar um pouco, com arte da boa, faça um favor a si próprio e vá a Lisboa ver duas exposições. São três autores de alto nível: Jeff Wall (Vancouver - Canadá, 1946), com a deliciosa exposição Time stands still. Photographs, 1980 - 2023, no MAAT, e Paula Rego (Lisboa - Portugal, 1935-2022) com Adriana Varejão (Rio de Janeiro - Brasil, 1964), em Entre os vossos dentes, no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian.

Fui concebido no Brasil, nasci no Canadá, mas Portugal é o país do meu coração, por isso achei que valia a pena ir ver o trabalho de uma brasileira, de um canadiano e de uma portuguesa.

Jeff Wall é daqueles artistas que se estuda, que se revê, e que se discute. Algo nas fotos não parece correcto, mas não se consegue apontar nenhum problema técnico, é mais a surrealidade da situação que nos é apresentada. Muitas das composições são fotomontagens, mas estão tão bem feitas que só se percebe a sua natureza porque conceptualmente não faz sentido. Na peça “The flooded grave” vemos num cemitério, uma campa aberta inundada, que à primeira parece normalíssimo, mas num segundo olhar reparamos que no buraco, está todo um mundo de coral marinho, e aí o nosso cérebro reinicia. Obriga-nos a reolhar e a ponderar o que estamos a ver. Na época em que vivemos, uma foto que obriga a mais de um segundo de reflexão, é um milagre. Consumimos imagens de forma frenética e geralmente não precisamos de parar para observar, nem tempo para digerir e processar. Com o trabalho do Jeff esta velocidade é impossível.

Esta mostra tem ar de retrospectiva, primeiro que tudo pelo quantidade de material apresentado, segundo porque encontramos os trabalhos mais reconhecíveis do autor, e por último, porque temos também um video de 45 minutos, onde o autor falou dos trabalhos aqui apresentados, durante a montagem da exposição. Aproveitem para visitar, pois uma exposição desta dimensão e qualidade, com o artista a falar em primeira pessoa, no futuro não vai ser fácil de encontrar.

Quem for fã da Paula Rego tem agora uma boa oportunidade para ver o seu trabalho ao vivo e a cores, em Lisboa no CAM, e em Viseu, no Museu Grão Vasco. A pintura dela é soberba. Pinta muito bem pele e é eficaz com as proporções. Se fosse só por isto já era fixe, mas em Rego, nada é isento de grande significado, tudo é profundo. Seja a situação que se está a desenrolar na tela, ou sejam os olhares dos intervenientes, está sempre algo de sinistro ou preocupante a acontecer.

Este aspecto que encontramos na Paula, encaixa perfeitamente com o trabalho da Adriana Varejão. São maioritariamente esculturas pintadas, ou pinturas com pormenores esculpidos. Assim que entramos na sala de exposições, está uma coluna vertical que parece revestida com azulejos típicos de Portugal, e que algum bicho de boca gigantesca deu uma dentada. Mas afinal é pintura, não azulejaria e a parte “mordida” revela espuma poliuretano pintado em tons encarnados que simula carne e vísceras, matéria de que é supostamente feita a coluna.

Esta ideia de revelar, por vezes muito discretamente, que as peças são afinal orgânicas, leva a todo o tipo de interpretação, o que é bom. A minha foi que esta coluna portuguesa e muitas outras peças espalhadas pela sala, foram construídas com o trabalho forçado da escravatura, ou seja com carne. O universo do trabalho da Adriana ronda esta ideia de colonização da América do Sul pelos europeus, e é daqui que chego a esta interpretação de arrepiar os pêlos do cu.

Em suma: o Jeff e a Paula são dois autores que sempre apreciei muito, mas mesmo muito, a Adriana não conhecia, mas curiosamente foi a que me tirou o tapete de debaixo dos pés. Fui consolidar os sentimentos que nutria por dois amores antigos, que sabia que faziam parte de mim e das minhas duas origens, e voltei apaixonado por uma terceira parte de mim que já lá estava, mas que ainda não se tinha manifestado. Ora mais um tuga a perder-se por uma brazuca.