Opinião

A pornografia do IVA

16 jul 2018 00:00

A luta dos agentes culturais pela redução do IVA nos seus “produtos” tem uma coisa muito boa e a singular que é a união entre “prestadores de serviços” culturais com a sua industria: agentes, editores ou programadores.

De maior ao mais pequeno, esta é uma reivindicação que é mesmo transversal, ao contrário de muitas outras. E se cada um puxa para o seu lado, ou a brasa à sua sardinha isso enquadra-se, esperemos, no saudável espirito de competição entre privados ou, sem virtude alguma, nos desastrados favoritismos do Estado que seriam absolutamente dispensáveis caso este oferecesse condições mais justas ao trabalho cultural.

No entanto, há duas coisas que ferem de morte esta luta dos “artistas” e de quem gere as suas carreiras. 

Desde logo a intangibilidade do seu bem ou serviço. Esta coloca-o desde logo fora dos bens de primeira necessidade e no topo da categoria dos impostos, nomeadamente, do IVA mas não só.

Dessa “invisibilidade” resulta ainda a incompreensão do povo, e não do público, coisas diferentes.  Este último (público) é consumidor mais ou menos activo de cultura comprada, e reage  perante a necessidade poética da Arte para limpar a cabeça, para se conseguir produzir, viver. 

No entanto, para a maior parte das pessoas (povo) esse é um first world problem, um luxo quando o que está em jogo é pagar a renda e alimentar os filhos.

A segunda coisa, é não existir na verdade uma “terra média” da cultura em Portugal onde povo e público se encontrem, se conheçam e se aprendam a respeitar mutuamente. 

Seria desonesto da minha parte deixar de fora todo o trabalho LOCAL, de região para região, sem um plano ou desígnio nacional, lutando com cortes brutais de orçamento a cada ano que passa, de programadores, associações e particulares que é feito exatamente com este sentido e direcção.

Muitos dos obstáculos, aliás, a não se fazer mais, coincidem em forma e conteúdo com os de quem trabalha culturalmente num sentido mais nacional, mais cosmopolita ou no caso de tanta gente, itinerante, porque a estrada ainda vai sendo o caminho que leva a todo o lado.

Com a mesma justiça ,incluo aqui quem organiza festas, romarias e bailes populares, que conseguem, pelo menos no contexto de Verão, unir classes económicas e etárias num comboio que apita pelas praças paroquiais, essas sim, em todos os cantos do País. 

E já agora promotores de festivais com os bilhetes mais baratos da Europa e que devido a essa circustância, aliada ao potencial pelo desinteresse cultural e falta de poder de compra nacional, nunca seriam sustentáveis sem o envolvimento das marcas e dos mecenas que nos enchem de penduricalhos tipo arvore de Natal. Sem eles, nada feito, não acreditam é só fazer as contas. As bilheteiras não pagam os cartazes.

Em todo o caso, recupero a ideia da cisão, para dizer que a cultura em Portugal reflecte também  (cruelmente) a bipolarização da nossa sociedade e melhor dizendo faz jus às grandes diferenças sociais e econômicas entre a população. 

A nossa posição na cauda da Europa a nível de consumo como leitores, ouvintes de música e frequentadores de espetáculos, é preocupante. Além de sublinhar esses desequilíbrios, faz prova de que o volume que nos coloca ali, nessa modesta posição,  não provém do potencial do nosso povo enquanto consumidor de cultura, mas sim da realidade do nosso público, maioritariamente gente com algum conforto financeiro na vida que lhe permite o acesso dificultado à cultura por preços e impostos.

Não seria justo, mais uma vez, deixar de fora quem tristemente se endivida com créditos para a cultura ou quem, pelo contrário, poupa e investindo em cultura investe  em si mesmo, mas são cada vez menos estes justos exemplos e cada vez mais os clientes, sem o critério do gosto pela cultura, formando a massa humana de compradores que aparece a representar Portugal nas estatísticas.

Dito isto, sugiro que se deixe de olhar para as reivindicações culturais, especialmente a a luta para baixar IVA, tal como disse acerca da luta dos Professores, como um mero capricho de uma classe que é absolutamente necessária a uma sociedade , mesmo  que não saibamos muito bem explicar porquê e em que circunstancias. 

Só uma empatia a sério com os produtores culturais, formada em laços de proximidade e respeito e intercambio, conseguirá demonstrar como é verdadeiramente criminoso um Estado cuja maior riqueza reside na cultura dinâmica do seu povo e não só nos monumentos estáticos ou nas praias cheias, proceder assim. 

E assim sendo, é criminoso também não fazer um esforço para mediar o fosso cultural entre povo e público (criando a tal terra média que pode existir em festivais, exposições, itinerâncias) , não dando a oportunidade de, num desígnio nacional, juntar as duas forças (povo e público) e animar as vendas culturais.

É criminoso fazer-nos viver, criar e trabalhar num País em que a cultura é como o gasóleo, em que a maior parte do dinheiro que se faz se queima  em pagamentos de taxa e taxinhas, impostos incendiários, a um Estado que nem 1% consegue reinvestir na cultura, embora esta contribua cada vez mais (sabe-se lá como, não é?) para o PIB.

Criminoso, porque se as nossas obras fossem catalogadas e taxadas como pornografia beneficiariam de um IVA reduzido. Se promovêssemos touradas, e não espectáculos, teríamos apoio estatal. Só por estes “detalhes”, se poderá talvez concluir que os nossos institutos culturais e seus decisores e burocratas, achem que a indústria do sexo e a sua escravatura moderna, e a inevitável “festa brava”  traga mais cultura que a música, o teatro e o cinema, aos seus cidadãos. De outra maneira, como explicar isto? Esta pornografia do IVA?

Nota: O PS irá discutir na Assembleia a redução ou melhor o retorno do IVA dos espectáculos aos 6%. Talvez tenha lido os mesmos indicadores e, finalmente, visto a importância dos concertos ao vivo entre outras apresentações artísticas e o seu impacto na economia.

O PCP remete para o OE a decisão, esquecendo-se talvez de que os artistas são também trabalhadores necessitados de melhores condições, como tantos outros e de quem nos ajude a outra por elas; e o BE parece que já não se interessa tanto por este assunto como por outros. Sendo tanto artista precário uma força viva,  apoiante deste partido, desde a sua génese, a ver vamos como descalça a sandália de cabedal neste Verão de todas as parvoíces. 

*músico