Opinião

A alteridade

25 nov 2021 17:50

O eu só existe através do outro

Mergulhada em pensamentos provocados por circunstâncias e acontecimentos muito diversos, volta a causar-me espanto e incompreensão a tão grande incapacidade de olharem para os outros que muitos seres humanos demonstram, tanto na esfera individual como na colectiva.

Viver o mundo tendo-se como seu centro e nele incluir os outros apenas na exacta medida em que não interfiram, não alterem e não adiem os planos traçados, garantindo que de modo algum perturbam os grandes desígnios ou a vidinha mais trivial, parece ser coisa natural para demasiadas pessoas.

Muito embora só podermos dar de nós na mesma medida em que, num caminho a sós, nos descobrimos e nos entendemos para sabemos quem somos, precisamos primeiro do espelho que os outros para nós são, e que por inteiro nos reflecte, para o podermos saber.

Muitos parecem viver segundo um princípio de identidade que dispensa o atentar no outro, ignorando que apenas nos reconhecemos como “eu” através da sua fundamental presença que por contraponto nos permite construir a individualidade e que, ao devolverem-nos a imagem, nos ajudam a estruturar o como somos.

O eu só existe através do outro, isto é, através do exercício da alteridade que é precisamente “ser-se” o outro, colocar-se no seu lugar, ser capaz de entender o que sente, e de compreender, valorizar, e acolher, a sua preciosa diferença de nós.

Quando durante os últimos dias assisto, por exemplo, à pouca importância dada pelos familiares a um idoso em luta silenciosa com a angústia da solidão; aos gritos de desespero de uma mãe migrante cujo bebé ficou preso pelos guardas do outro lado de uma fronteira; à falta de vontade de poderosos e decisores políticos se comprometerem na salvação de um planeta em apuros e na forma como os seus filhos e netos nele poderão viver; ou à violência do protesto de manifestantes contra vacinas e medidas que reduzem o perigo de doença e morte nos mais vulneráveis, pergunto-me onde estará esse tão necessário olhar sobre o outro, que por um lado o compreenda, e por outro possa devolver uma imagem verdadeira de si mesmo, a quem olha.

Não o havendo, será sempre um olhar turvo e distanciado aquele que terão sobre si próprios, embora altamente centrado em si, e sempre pouco capaz de gerar empatia, de cuidar, de encontrar caminhos, de criar soluções. De criar.

Porque afinal é disso que trata a vida. Criar o dia seguinte, criar a felicidade de hoje, criar a relação com os outros, criar humanidade e beleza, criar ligações e histórias.

Fechando o círculo, é talvez a fruição artística o que melhor possa salvar da surdez e da cegueira ao outro, permitindo que a multiplicidade de emoções e sensações que ela provoca sejam entendidas como manifestações da alteridade, como sinais de outros “eu” que importa considerar, conhecer e acarinhar.

E esses outros “eu” não são apenas os outros mais próximos, mas também o que é oposto, incomum, ou muito diferente de nós.