Aquando da Peregrinação Internacional de Junho do ano passado no Santuário de Fátima referiu que “a Humanidade está desorientada e perdida”. Hoje, esta afirmação faz ainda mais sentido?
Continua a fazer sentido, porque há sinais e sintomas que denotam que a Humanidade está em desordem, perdida, sem horizontes, e com muita maldade na vida das sociedades e das pessoas. Veja-se o drama da guerra, quase sempre pela disputa de territórios e de bens essenciais ou de bens que são sinal de riqueza e, portanto, de domínio. A questão última da guerra é sempre o desejo de domínio e de poder de pessoas e de povos, uns sobre os outros. Se não houver, do ponto de vista ético, um sentimento das pessoas, que tem que ver com fraternidade, com capacidade de relação, de compreensão e de diálogo, com aceitação e com a consideração da dignidade dos outros, vamos andar até ao fim dos séculos sempre em lutas e em guerras. Face aos avanços da Humanidade, a tantos níveis, já não devia haver lugar para algumas das situações, nem fosse pelo simples uso da razão.
É também um problema de lideranças?
Também. Faltam-nos líderes e instituições capazes de serem convincentes na oferta dessas perspectivas de vida. A própria Igreja Católica, por vezes, também não tem tido a capacidade de, a partir da sua mensagem fundamental, iluminar a vida das pessoas para tornar a Humanidade mais orientada, com princípios e fundamentos éticos mais credíveis.
A guerra é uma das preocupações expressas na sua mensagem de Natal.
O que se está a acontecer na Ucrânia, em Israel, na Faixa de Gaza e na Palestina é um drama tremendo. Mas não podemos também passar ao lado da questão climática. Do ponto de vista da Igreja, preocupa-nos o modo como a Igreja se relaciona com a comunidade, com a sociedade e com os fiéis. No País, há questões muito prementes, relacionadas com a economia e com as condições de vida das pessoas e das famílias, muitas a passar por dificuldades tremendas.
As próprias instituições de apoio também estão a atravessar dificuldades.
As nossas IPSS estão a passar por momentos muito dramáticos. Há o risco de muitas não conseguirem subsistir. Se isso acontecer. será um grande problema, já que estas instituições são o último reduto para muitas pessoas e famílias.
Foram recentemente conhecidos dados do Instituto Nacional de Estatística, segundo os quais 42% da população estaria em risco de pobreza se não fossem os apoios do Estado e 17% dos portugueses são pobres. Como comenta estes números?
São números alarmantes. Isto tem a ver com conjunturas, mas também com as políticas e com a nossa maneira de ser. Mas não estamos condenados a ser pobres. Nunca resolveremos todos os problemas sociais. Nem as sociedades mais desenvolvidas o conseguem. Precisamos de olhar para esta realidade de uma forma diferente, mais concreta e organizada, e aproveitar melhor os recursos, nomeadamente, aqueles que vêm da União Europeia. Esses recursos têm sido tantos, mas, às vezes, dá a impressão que não redundam num desenvolvimento da sociedade, dotando-a de capacidade de produzir e gerar riqueza.
O que entende ser mais premente para inverter esta realidade?
O ciclo da pobreza resolve-se com o trabalho e com produção de riqueza, que ajude as pessoas a realizarem-se e o País a crescer. Resolve-se também com uma forma equitativa de distribuição das remunerações e dos impostos e dando confiança às pessoas empreendedoras. Mas há uma parte importante que depende muito da capacidade de quem organiza e de quem dirige. Claro que há factores de carácter macro-económico, relacionados com conjunturas internacionais, que não podemos dominar, mas, aquilo que está ao nosso alcance, e é muito, tem de ser suficiente para sermos capazes de tornar o País mais competitivo e onde todos tenham o necessário para viver.
A crise social, que agora é também política, pode favorecer o crescimento dos fenómenos extremistas e de populismos?
É evidente que o contexto actual não facilita em nada a vida de um país e de uma sociedade. Quanto mais a política falha nos seus objectivos e na sua concretização, mais cria descontentamento e possibilidades de as pessoas irem à procura de pretensas seguranças, que normalmente são mais de carácter extremista. Mesmo do ponto de vista religioso corremos esse risco. Se não há uma definição, uma determinação, uma linguagem objectiva, se não há fundamentos bem sólidos, também se corre o risco de fundamentalismos, mesmo ao nível das diferentes religiões. As falhas das instituições abrem caminho aos extremismos, porque as pessoas vão à procura de seguranças, que às vezes são falsas seguranças.
Falou em confiança. Parece haver hoje uma falta de confiança nas instituições.
A certa altura, o cidadão comum interroga-se: “em quem podemos confiar?” Esse é um problema muito sério, que dificulta muito o progresso das sociedades. A dimensão ética tem de estar sempre presente na vida de uma comunidade. Caso contrário, tornamo-nos uma selva sem princípios, sem objectivos. E isso é o pior que pode acontecer a uma sociedade. Essa tal indefinição e falta de fundamentos.
Este ano foi um ano difícil para a Igreja em Portugal, com a divulgação do relatório da Comissão Independente para o Estudos dos Abusos Sexuais. Já reuniu com alguma vítima?
Tive ainda poucos contactos. Apesar da total disponibilidade da nossa parte, normalmente as pessoas não manifestam grande vontade de estar com os bispos. As pessoas têm tido mais à vontade para falar directamente com a Comissão Independente e agora com o grupo Vita, estruturas nomeadas pela Igreja, mas com autonomia e independência. Para uma pessoa que foi abusada não é exactamente a mesma coisa falar com os técnicos dessas estruturas ou falar com o bispo. Percebemos que são realidades diferentes e nós respeitamos. As próprias comissões diocesanas, que estão mais na tutela directa da Igreja, não conseguem ter o mesmo tipo de acolhimento e de proximidade do que essas equipas independentes.
Compreende essa posição das vítimas?
Compreendo. Sentiram-se lesadas e abusadas dentro da Igreja. É preciso retomar uma confiança muito grande para vir falar à mesma Igreja. O recente relatório do Grupo Vita indica que uma percentagem elevadíssima de pessoas que procurou a equipa nunca tinha falado com ninguém sobre o assunto. Falaram agora pela primeira vez, em 30, 40 ou 50 anos. Já tinha acontecido isso também com a Comissão Independente. Percebe-se que é um trauma forte, uma marca na vida de uma pessoa, que a leva a optar pelo silêncio e, porventura, por um sofrimento interior. Alguns, tiveram coragem para, diante de um grupo de pessoas independentes, autónomas e isentas, desabafar a sua situação.
A Associação das Vítimas de Abuso na Igreja enviou, recentemente, uma carta aos bispos portugueses, onde confessa “tristeza, desagrado e indignação” por considerar que “poucas acções foram desenvolvida” para reparar os danos. Como comenta?
Respeito. O sentimento das pessoas é muito importante. Se a pessoa sente que a acção ou as palavras da Igreja não lhes tocou o coração ou não são suficientes, acredito que seja essa a realidade. Às vezes, também é difícil perceber o que mais pode a Igreja fazer. Olhando para o passado, podia e devia ter feito mais e melhor. Isto aplica-se não só à Igreja, mas à sociedade em geral. Podíamos todos ter feito mais. No presente, é difícil saber o que é que uma pessoa espera da Igreja. Criou-se uma comissão independente, que fez o seu trabalho, para que se pusesse cá fora a informação que se conseguiu recolher sobre o que se passou durante 70 anos. Para dar sequência a este trabalho, criou-se o grupo Vita. Instituíram-se as comissões diocesanas que estão a trabalhar ao nível da formação e prevenção, mas também de escuta. Tenho alguma dificuldade em perceber o que mais se pode fazer.
Há a questão das indemnizações às vítimas que a Igreja em Portugal ainda não assumiu, ao contrário do que aconteceu noutros países.
O presidente da Conferência Episcopal tem sempre dito que as indemnizações são uma questão do foro dos tribunais. Uma indemnização entende-se quando há um processo, que julgou uma pessoa, que foi considerada culpada e que o tribunal impôs uma indemnização. Em Portugal ainda não tivemos qualquer caso destes. O que temos defendido é o apoio às vítimas para reparar o seu sofrimento e, porventura, criar algumas condições de vida que o facto de terem sido abusadas não lhes deu. Essa porta nunca se fechou. Já está a acontecer no que diz respeito ao acompanhamento psicológico e psiquiátrico em várias dioceses. Agora, estipular que toda a pessoa que se diz abusada e que se entende que foi abusada vai receber uma verba... penso que não vai acontecer. Noutros países também não se avançou assim. Nos Estados Unidos, caso que é muitas vezes citado, houve processos em tribunal, através dos quais as dioceses foram condenadas a indemnizar as pessoas.
Entre as recomendações da comissão independente está o dar atenção à formação dos futuros padres, nomeadamente, à “educação afectiva e sexual”.
É uma área onde já se está a trabalhar. Há pouco anos, a Igreja de Roma forneceu um documento orientador da formação geral em ordem ao sacerdócio, que tem já uma elaboração própria em Portugal e em muitos outros países, e que foca todos os âmbitos da vida dos sacerdotes. No que diz respeito à afectividade, à sexualidade e às relações entre as pessoas , a ideia é criar um estado de alma e de espírito feliz, que leve as pessoas a não caírem em nenhuma tentação de abuso, seja abuso sexual, seja abuso de poder ou de domínio sobre alguém. Este foi também um temas em reflexão no Sínodo. Estou convencido que, na segunda fase da Assembleia Sinodal, haverá algumas recomendações em relação a este processo, que tem de ser apurado e aperfeiçoado.
“Igreja não está ainda preparada para o fim do celibato obrigatório”
Foi, a par de D. José Ornelas, bispo Leiria e presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, o representante de Portugal na recente Assembleia do Sínodo dos Bispos. O que considera mais marcante neste encontro?
Tivemos antes a fase que o Papa chamou “de todos”, na qual todos foram ouvidos, todos tiveram a possibilidade de exprimir o seu pensamento. Foi uma forma de pensar tanto dentro como fora da Igreja e nas margens. Passou-se depois à Assembleia Sinodal, em que tive a alegria de participar. Sentimo-nos, de facto, num ambiente eclesial, espiritual e religioso, à procura da escuta da palavra de Deus, da voz do Espírito Santo, do diálogo uns com os outros, para perceber como é que a Igreja deve ser e viver no tempo presente, para levar a mensagem que lhe foi confiada ao mundo. Este é o objectivo.
Mas há também muitas questões relacionadas com a organização da Igreja.
Claro. Há questões que têm que ver com o interior da Igreja, com o modo como se exerce a autoridade e como todos os membros da Igreja podem participar ou não nesse exercício de autoridade. A autoridade é um serviço. É diferente de poder. Só compreender isto exige um trabalho muito grande. Os ministros ordenados ou sacerdotes, os leigos e os consagrados, todos têm de participar na vida da Igreja, que não pode ser o reduto de alguns. Naturalmente, aquilo que é próprio do ministério dos padres não pode ser exercido pelos leigos. Há também a relação entre a Igreja e a sociedade, que hoje, sobretudo no Ocidente, já não tem aquela matriz uniforme e cristã. É uma sociedade plural e isso traz, evidentemente, muitas modificações no nosso modo de ser e de estar na relação com uma sociedade plural. Mesmo dentro da Igreja há perspectivas variadas.
Espera-se que processo sinodal traga algumas alterações na organização da Igreja. Que mudanças considera mais prementes?
A participação alargada de todos naquilo que é a vida da Igreja já é uma realidade, mas ainda não está tão desenvolvida como, porventura, deve ser. Já existem alguns instrumentos e órgãos de participação e de co-responsabilidade na Igreja, como os conselhos pastorais e para os assuntos económicos, mas que ainda têm um impacto muito pequeno na vida das paróquias e das dioceses. Tem de haver um entrosamento muito mais próximo na relação entre o ministério ordenado, que é dos sacerdotes, e aquilo que é a vida dos cristãos comuns, que receberam o baptismo, de forma a que a construção das comunidades tenha mais participação de todos. Há pessoas que sonham com mudanças muito grandes, relacionadas com o lugar e o papel das mulheres dentro da Igreja. Todos entendemos que as mulheres devem ter um lugar de maior relevância dentro da Igreja, mesmo que não entendamos que venham a ser ordenadas no futuro. Têm de ter uma participação mais viva, mais activa e com mais responsabilidades atribuídas. Isso faz parte integrante do nosso modo de ser Igreja hoje.
O acesso das mulheres ao diaconado foi a questão que mais dividiu os participantes na Assembleia Sinonal.
O Papa Francisco criou duas comissões para estudar a questão do diaconado feminino na História. As duas concluíram que não terá existido. Agora, voltou a falar no facto de serem exclusivamente os homens a serem ordenados, porque Jesus foi homem. É uma visão que também é teológica, portanto, é assumida como doutrinal. Pelo que, não é expectável que venha a acontecer uma mudança. Isso não significa que não haja uma outra atitude e uma outra consideração da Igreja relativamente ao modo como homens e mulheres participam na vida da Igreja. Isso já está a acontecer.
Em relação ao celibato, o relatório-síntese da Assembleia Sinodal defende que deve ser repensada a sua obrigatoriedade como disciplina da Igreja de rito latino. Partilha dessa visão?
A questão da ordenação das mulheres é de carácter doutrinal e teológico. Esta, é de âmbito disciplinar, mas ao mesmo tempo espiritual. São coisas muito diferentes. A experiência da Igreja de rito latino tem-nos demonstrado que há problemas e dificuldades, mas o mesmo acontece nas igrejas de rito bizantino e oriental, que têm ordenações de homens casados. É também assim no seio dos casais e das famílias. Pode ser que o fim do celibato obrigatório venha a acontecer algum dia. Acho que não vai nem deve acontecer ainda. A acontecer agora seria um foco de divisão demasiado grande dentro da Igreja de rito latino. Devemos avançar de forma firme, mas ao mesmo tempo, de forma a não criar fossos ou divisões profundas dentro da nossa igreja. A Igreja não está ainda preparada para o fim do celibato obrigatório. A mudança criaria um grande mal-estar numa parte imensa da Igreja. À procura de um aparente benefício, iríamos causar muitos outros malefícios, causando uma divisão profunda entre diferentes sectores da Igreja Católica.
Percurso
Da aldeia de Pia do Urso a bispo
Virgílio Antunes nasceu há 62 anos na Pia do Urso, aldeia do concelho da Batalha, localizada a poucos quilómetros da Cova da Iria. Desses tempos, guarda recordações de uma infância “feliz” e “muito livre”, em contacto com o campo. “Ser livre é das melhores memórias que tenho da minha meninice”, diz. Esse espírito de liberdade estendeu-se, depois, à vida em Leiria, cidade para onde se mudou, em 1971, com apenas dez anos, para ingressar no Seminário Diocesano, num tempo em que os seminaristas faziam o ciclo e o liceu nas escolas públicas. “Com dez anos, atravessávamos a cidade toda. Isso é uma coisa impagável. O ciclo era no sítio onde está hoje o Arquivo Distrital e havia aulas de desporto nas piscinas e no antigo pavilhão”, recorda o agora bispo, que frequentou depois Liceu Nacional de Leiria (actual Secundária Rodrigues Lobo). “O meu primeiro ano de liceu foi em 1974. Foi um período conturbado. A anarquia de greves, as RGA [Reuniões Gerais de Alunos]. Vivi isso no início da adolescência.” Com as experiências vividas, foi sedimentando a vocação, acabando por ingressar no Instituto de Estudos Teológicos de Coimbra, para frequentar o Curso Filosófico-Teológico. Foi ordenado em 1985, passando a desempenhar funções de prefeito e professor no Seminário de Leiria. Entre 1992 e 1996, estudou o Instituto Bíblico Pontifício, em Roma, onde se licenciou em Exegése Bíblica. Frequentou também a École Biblique de Jerusalém, após o que foi nomeado reitor do Seminário de Leiria e docente de Teologia Bíblica em diversas instituições. Em 2005, integrou a equipa de capelães do Santuário de Fátima. Três anos depois foi nomeado reitor da instituição, sucedendo a monsenhor Luciano Guerra. Acabaria por não cumprir o mandado na íntegra, porque, em 2011, o Papa Bento XVI nomeou-o bispo de Coimbra. Cumpre o segundo mandato como vice-presidente da Conferência Episcopal Portuguesa. Nos tempos livres, dedica-se à leitura, especialmente de livros na área dos estudos bíblicos. Descontrai também a cuidar das árvores que a família tem na sua terra natal.