Entrevista

João Figueiredo: "O Google manda no sucesso de uma empresa"

20 mar 2020 11:50

O administrador da Janela Digital, empresa tecnológica de Óbidos, diz que é preciso um “desígnio nacional” para o digital. E que empresas e universidades “deviam estar muito mais ligadas”

Raquel de Sousa Silva

Foi recentemente aprovado pelo Governo o Plano de Acção para a Transição Digital. Acredita que terá verdadeiro impacto na sociedade e na economia?
Sou a favor, porque obviamente é melhor fazer alguma coisa do que nada. O que não acredito é que acções superficiais tenham o impacto que desejaríamos. Se calhar não sou imparcial, porque sendo da área das tecnologias tenho uma ideia muito própria do que se devia fazer ao nível do País no digital e nas tecnologias.

O que se deve fazer?
Tem de se fazer do digital um desígnio nacional. Se os políticos conseguirem perceber a importância que as tecnologias terão no futuro, e fazer disso um desígnio nacional, têm de actuar como actua uma empresa e fazer algo que tenha efeito. É preciso começar na base, na educação desde os níveis mais baixos. Tem de haver educação para o digital no ensino básico, no secundário, no superior e nos programas de investigação. Sabemos que toda a indústria assenta hoje em máquinas que têm de ser programadas, sabemos que a inteligência artificial é o futuro. Há dias falava com um colega sobre o facto de as Bolsas terem caído [devido ao surto de coronavírus]. Com a informação armazenada de há tantos anos, de certeza que traders e empresas multimilionárias contrataram já os melhores programadores que, com a inteligência artificial, conseguem prever o que vai acontecer nos mercados e com isso fazem o que querem. É simples. A inteligência artificial é como ensinar um bebé. É só preciso dar-lhe tempo.  

A inteligência artificial será uma ameaça para os trabalhadores?
Tudo pode ser uma ameaça. Lembro-me de termos ido à Lusomundo, então dona do JN e do DN, que assentavam na receita dos classificados. Eram na altura 80 milhões de contos por ano. ‘Isto nunca vai desaparecer’, acreditavam. Explicámos que a tendência era o online. Eram os velhos do Restelo, hoje somos nós, quando nos falam em começar coisas novas. Não podemos ser assim. Temos de inovar. É preferível ir à frente. Mas só acontece se estivermos empenhados. Não domino a questão da inteligência artificial, mas sei o que pode fazer, porque sei como o computador funciona. E tenho de me informar. Mas claro que se não quiser fazer nada não faço.

Internet e Google são hoje indissociáveis…
Ninguém consegue manipular o Google, porque ele tem de ser óptimo para as pessoas que o procuram. No início da internet, determinados sites repetiam palavras até à exaustão, escritas a preto sob fundo preto ou a branco sob fundo branco. Esta técnica, chamada black hat, é agora penalizada pelo Google. Quem o fizer deixa de existir na internet. Porque a internet é o Google. Pode ter-se a melhor página, muito assertiva, muito interessante, mas se não aparecer no Google nunca vai ter sucesso. É uma dificuldade que não sei como se vai combater. O Google manda no sucesso de uma empresa. E só não manda mais porque o driver dele é 'tenho de ser útil para o utilizador'. Temos a ilusão que o Google nos dá os melhores resultados [quando fazemos uma pesquisa], mas não dá. Neste momento, a internet é aquilo que o Google quiser. Temos páginas muito boas, mas se não aparecerem morrem. 

Um dos problemas das empresas de tecnologias é a falta de recursos qualificados. O que é imprescindível fazer para resolver esta questão?
Actuar. A tecnologia tem de chegar às universidades. Tanto o Politécnico de Leiria como outras universidades têm tecnologia com base no critério custo e na ideia dos professores, que às vezes não estão bem informados. Entretanto as empresas também passaram a oferecer tecnologias às universidades. Mas se houver limitações de custo, ou outras, que as impeçam de ter as melhores  , elas não vão ser um parceiro importante para as empresas. Em vez de estarem de costas viradas para as empresas, deviam estar sempre a consultá-las. Não temos recursos humanos. Estamos à espera que alguém forme a nossa matéria-prima o melhor possível, para que quando vierem para a empresa possamos fazer o nosso trabalho.

Uma empresa não pode esperar que os alunos saiam do ensino superior formados exactamente à medida das suas necessidades, que serão diferentes das do seu vizinho…
Isso tem de acontecer. Tanto precisamos de programadores nós como todas as empresas do Parque Tecnológico de Óbidos. Também as empresas de cutelarias, por exemplo, que usam CNC, precisam de programadores. O mesmo se passa com as empresas de arquitectura. As tecnologias que usamos são iguais. Faltam pessoas com formação em programação. A nossa empresa tem 150 pessoas, podia ter 300 ou 400. Não faltam clientes a pedir-nos desenvolvimento. Mas também falta pessoal na área da comunicação e do marketing digital. E também na área da gestão. Nas universidades não se criam gestores. Como é que isso é possível em isolamento face às empresas, sem intercâmbios?

Nos últimos anos as universidades passaram a estar mais ligadas às empresas…
Não noto isso. As universidades e as empresas deviam estar muito mais ligadas. Não estamos a fazer as coisas correctamente. Cada universidade tem a sua estratégia, faz o que lhe apetece. As matérias leccionadas são antigas, porque é mais confortável. Que orientações do Governo há para actualizar? Quem é que no Politécnico de Leiria ou nas universidades trata do assunto inteligência artificial? Quem é que veio falar com as empresas para perceber o que é ou não interessante? Ninguém. Está-se a perder tempo.  

Foram anunciadas bolsas para estudar programação…

Não sou contra as bolsas, mas, mais uma vez, estamos a mandar coisinhas para o ar. O que são 300 bolsas? É isto o desígnio nacional para a informática? Também nós conseguimos lançar medidas avulsas para fingir que estamos a trabalhar numa coisa. Precisamos de uma estratégia, de um choque tecnológico sério. Veja-se o caso da China. Conseguiu copiar os Estados Unidos, conseguiu ir buscar tecnologia e tem hoje as melhores empresas tecnológicas ao nível do fabrico. A Apple faz os seus telefones lá. Tudo o que é micro é feito na China. Inteligência artificial, machine learning, big data, tudo isto será crucial. É a próxima vaga.

Para que haja programadores, é preciso que os jovens tenham apetência pela matemática?
É um mito. Claro que um programador precisa de ter um tipo de raciocínio de previsão, de pensar no abstracto. Mas também quem vai para arquitectura tem. Nem todos vão ser programadores de algoritmos. Os da Janela Digital não precisam de perceber de matemática. E quando precisam, investem um bocadinho de tempo e vão à internet ou junto de alguém que já tenha resolvido o problema. Já vi muitas pessoas que não eram assim tão boas a matemática a darem-se bem em programação. Se houver mais estímulos e mais motivação, conseguimos captar mais recursos para esta área.

Ao nível do sistema de ensino é preciso fazer o quê?
Mostrar aos jovens que tudo passará pelo digital e que tudo implicará programação. Cabe aos governos fazer isso. Podemos estar in ou estar out e ser apenas um país de turismo. Mas se queremos estar na carruagem da frente, temos de ter lá alguém. Como é que isso se fomenta? Não é afastando os miúdos das tecnologias, não é sem cursos tecnológicos.

Requalificar desempregados para a área da programação não é uma opção?
Em cenário de pleno emprego, estaríamos a falar de 'desgraçadinhos' sem as qualificações mínimas. Sei que não é politicamente correcto dizer isto. Para missões mais cerebrais precisamos de massa cinzenta. Não podemos enganar-nos a nós próprios dizendo que se pode tentar porque em mil haverá um que conseguirá. Mas fica bem. Se fosse político faria isso. Como político teria responsabilidades sociais, como empresário não posso empregar essas pessoas. As empresas não se podem dar a esse luxo, porque as pessoas quando vão ao supermercado querem é as coisas mais baratas. As empresas estão cá para isso: produzir as melhores coisas ao preço mais baixo. Claro que se nos impuserem que além de pagarmos impostos temos de dispor de 20 ou 30% do orçamento para responsabilidade social, isso passa a ser uma obrigatoriedade. E passamos a ser 20 ou 30% menos competitivos. Já pagamos impostos, cabe ao Estado a parte social.

Mas as empresas também têm de ter alguma responsabilidade social…
Isso é muito interessante de dizer. Mas também se lhes diz que têm de ser mais competitivas. Como gestor, tenho de ter dinheiro para pagar aos trabalhadores. Para nós a responsabilidade social são as pessoas que estão mais perto de nós. Temos de ser competitivos para existir. Fizeram-se tentativas aqui no parque para requalificar pessoas para programação. E o Politécnico também fez. Mas nós desempenhamos um papel social quando formamos pessoas. As que entram estão um ano a aprender. Não são nada produtivos para a empresa, 90% do tempo estão a aprender. Pesam-nos porque temos de lhes pagar o salário e porque retiram tempo produtivo a outro programador. Estamos sempre a recrutar e sempre a formar. É um peso que não deveríamos ter, mas temos de suportar porque quem sai da universidade não vem com os parâmetros de que precisamos.

Consegue recrutar fora da zona Óbidos/Caldas da Rainha?
O presidente do Politécnico tem dito para pagarmos melhores salários e irmos a Leiria buscar pessoas. Mas fazer viagem de ida e volta todos os dias, ter de almoçar fora e estar longe de casa, são aproximadamente 500 euros por mês. Se um programador ganhar em média dois mil euros - não é dos melhores, mas também não é dos piores, temos aqui programadores a custar cinco mil euros - mais 500 euros são 25% do salário. Até podemos pagar isso, mas ficamos 25% menos competitivos. Só que o dinheiro não paga o tempo perdido na estrada nem o cansaço. No dia em que essa pessoa tiver a mesma oferta à beira de casa muda logo. Já tentámos, mas não dá. Andamos a aquecer o forno e vêm outros tirar o pão, como se costuma dizer. Sem perceber o que se passa na realidade, Rui Pedrosa diz isso, mas não é assim. Poderia até ser, se não houvesse uma procura tão grande destes recursos.

João Figueiredo
Um curso que fez toda a diferença

Aos 48 anos, é um dos sócios fundadores da Janela Digital (o outro é Emídio Cunha), empresa tecnológica de Óbidos que criou o Portal Casa Sapo, que continua a gerir. A empresa integra hoje o universo Altice, ligação que vem do tempo da então PT e do Sapo, “o Google da altura”. Os sócios da empresa de Óbidos foram apresentar o seu portal imobiliário a várias entidades e os responsáveis do Sapo gostaram do projecto e quiseram comprar. João Figueiredo e o sócio aceitaram ceder 50%, situação que se mantém, embora já 
tenham tentado readquirir essa parte, conta. Licenciado em marketing, o empresário completou o ensino secundário num curso técnico-profissional de informática, numa altura em que não havia Windows e os computadores nem disco rígido tinham. Era a época em que despontava o interesse pela informática e havia dinheiro para cursos. Deu formação e mais tarde foi sócio de uma empresa que levou a internet para as Caldas da Rainha. A criação da Janela Digital veio a seguir, com o intuito de promover os negócios online.