Entrevista

Entrevista | Inês Henriques: “muitas vezes, se errei, foi pelo excesso de trabalhar”

29 dez 2017 00:00

É a mulher do ano do desporto português, com uma batalha burocrática de permeio. O recorde mundial e o título universal dos 50 quilómetros marcha fizeram de 2017 uma perfeição. E tudo começou em Porto de Mós...

Foi um ano absolutamente perfeito para a Inês, num processo que curiosamente começou no distrito de Leiria.

Sim, a participação no Campeonato Nacional dos 50 quilómetros marcha, em Janeiro deste ano, em Porto de Mós, foi o início de toda a luta pela integração da variante feminina desta distância no programa do Mundial de atletismo. Tínhamos o objectivo de fazer melhor do que a melhor marca que existia, que era de quatro horas, dez minutos e 59 segundos, e ainda a esperança de fazer melhor do que quatro horas e seis minutos – a marca de qualificação masculina - para podermos estar no Mundial, mesmo que numa prova mista. Queria demonstrar que era possível, mas na altura não consegui, porque me entusiasmei e faltou-me experiência a partir dos 30 quilómetros. Mas fiz as quatro horas, oito minutos e 26 segundos, que já era uma marca de grande valia e, claro, recorde mundial feminino.

A equidade dos programas masculinos e femininos só encontrava excepção nos 50 quilómetros marcha.

Tem sido um processo gradual. Lembro-me da introdução de algumas disciplinas no programa feminino, como o lançamento do martelo e o salto com vara, nos Jogos Olímpicos de 2000, e os 3 mil metros obstáculos, que entraram apenas em 2008. Na marcha, durante muito tempo as senhoras faziam apenas os 10 mil metros. Os 20 quilómetros só foram integrados em 1999, no Campeonato do Mundo de Sevilha. Já tinha havido algumas a fazerem os 50 quilómetros, mas nada de muito expressivo. O que eu e o meu treinador, Jorge Miguel, queríamos era alcançar o primeiro recorde do Mundo, mas com uma marca que tivesse impacto e fizesse mexer as consciências.

Mas porquê tanta resistência?

A verdade é que as mulheres ainda não tinham feito muita pressão para que tal acontecesse e a Federação Internacional, ao estabelecer a marca de qualificação igual para senhoras e homens, não esperava que alguma conseguisse. Queríamos provar que era possível. Os 50 quilómetros só entravam sobre pressão. Não foi a melhor forma, porque só soubemos três semanas antes do campeonato, mas só assim seria possível. E lá entrámos as sete guerreiras...

Tem noção se já há mais atletas interessadas em participar na prova?

Agora, que tudo está oficial, é muito mais fácil. Ouvi uma entrevista da campeã olímpica dos 20 quilómetros, a chinesa Liu Hong, que foi mãe há pouco tempo e quer treinar para os 50 quilómetros e estabelecer o recorde do Mundo abaixo das quatro horas. Muitas espanholas também estão interessadas. Até já temos um grupo no Facebook das mulheres dos 50 quilómetros. Há países, como Portugal, que têm muitas atletas com marcas para ir às grandes provas, mas que tinham de ficar de fora porque só podem ir três. Assim, têm oportunidade de ir a outra distância. Sempre achei uma injustiça os homens poderem e nós não.

Fazer 50 quilómetros não é para todas...

Considero que têm de ser atletas com alguma experiência, mas depois vemos as duas melhores chinesas que estiveram no Campeonato do Mundo com 21 anos. E a terceira chinesa, num espaço de quatro meses, fez três provas de 50 quilómetros. Mas China é outro mundo... É óbvio que é preciso muito treino e algum tempo de carreira.

A experiência é fundamental.

Claro. Na primeira prova, em Porto de Mós, pensei que as pilhas não acabavam e acabaram. Cometi esse erro e percebi logo que não era para repetir. Depois, em Londres, no Campeonato do Mundo, foi tudo muito mais planeado, tudo muito certo em termos de ritmos. Deixei a chinesa para trás aos 30 quilómetros, precisamente como o meu treinador tinha previsto, e sabia que a partir dali era fazer como tínhamos planeado, que campeã do Mundo seria. Tive sempre dentro do recorde do Mundo, mas isso não me chegava, queria menos de quatro horas e seis minutos. Só que aos 44 quilómetros percebi que estava a ficar muito débil muscularmente, mas bem de raciocínio, que conseguia fazer as contas. Verifiquei que podia baixar um bocadinho o ritmo para conseguir fazer menos das quatro horas e seis minutos e consegui, por quatro segundos.

Fez duas vezes a prova, bateu duas vezes o recorde mundial.

Agora a marca já é de uma grande valia, mas ainda é possível fazer melhor. Houve um senhor inglês que estudou a minha prova e concluiu que ainda posso melhorar dois minutos. Acredito que sim, até porque no Campeonato do Mundo não consegui dormir. Estava muita coisa em jogo, tentei descansar, mas era impossível. Pus esse problema para o lado e tentei desfrutar ao máximo da competição e do momento. Se tivesse descansado, provavelmente não existiria aquela quebra no final. Também tenho de estudar um pouco mais sobre o abastecimento e pedir ajuda ao nutricionista para melhorar nalguns aspectos.

A Inês chegou ao título e ao recorde aos 37 anos, numa idade em que muitas atletas já não competem. Estes feitos valeram por toda a carreira?

Foi o meu treinador que me propôs, em Novembro de 2016, tentar fazer os 50 quilómetros. E muito bem, porque ele sabe que gosto de desafios e se me queria reinventar, se queria continuar na marcha, a distância mais longa era ideal.

Já pensava em abandonar?

Depois dos Jogos Olímpicos fiz uma reflexão, mas tendo em conta que em 2016 bati por três vezes o meu recorde pessoal aos 20 quilómetros e continuava a gostar do que fazia, decidi continuar, fazendo um balanço ao fim de cada ano. Mas agora, a possibilidade dos 50 torna tudo mais fácil para mim. O ano de 2017 foi aquele em que fui menos à fisioterapia. Treinei mais, é verdade, mas é em tempo e não tanto em intensidade. Quero continuar, pelo menos, até Tóquio, em 2020. Depois de sabermos que a prova se vai realizar no Campeonato da Europa de 2018, em Berlim, o advogado norte-americano que me tem acompanhado em todo este processo já começou a trabalhar na introdução dos 50 quilómetros nos Jogos Olímpicos.

E seria para ganhar outra medalha?

Agora, muitas mais atletas vão fazer os 50 quilómetros e com outra qualidade. A minha marca é de grande valia e não é qualquer atleta que a faz, mas só a possibilidade de podermos estar a lutar por uma medalha olímpica é fantástica. O que vier a seguir é óptimo e o que fiz mais ninguém vai fazer. Fui a primeira, esforcei-me todos os dias sem saber se podia demonstrar o que estava a trabalhar e só soube a três semanas da prova. Só pedi para me inscreverem numa prova mista na qual não tinha direito a nada. Depois, recebi uma recompensa muito grande.

Tudo o que é adiado pela alta competição é recompensado por estes momentos?

Sem dúvida. Tive dez anos para fazer a minha licenciatura em Enfermagem. Não estou a exercer, mas é minha. É uma mais-valia para o meu pós-carreira, mas naquele momento em que cortei a meta tudo valeu a pena. Os momentos bons, os momentos menos bons. Um dos momentos que foi muito duro de ultrapassar foi o Campeonato do Mundo de 2015, em Pequim, em que fiquei em 24.º e os últimos cinco quilómetros fiz muito lentos, em mais de 25 minutos. Foi muito mau, porque quando estou a representar Portugal quero fazê-lo da melhor maneira possível. Cheguei a pôr em questão se continuava, porque queria ser atleta, mas a retirar prazer do que estava a fazer e isso não estava a acontecer. Depois desse campeonato estive mês e meio sem treinar. Depois comecei, sem grandes objectivos. Mas quando o Miguel Carvalho fez, em Leiria, a marca de qualificação para os Jogos Olímpicos, aquilo deu-me energia e mudei a forma de estar. Decidi continuar, desfrutar, sempre com responsabilidade no treino e em competição, mas o prazer foi diferente e os resultados apareceram.

Alguma coisa mudou depois daquele momento?

Quem me conhece sabe que continuo a ser a mesma pessoa. Agora, mudou a minha responsabilidade e mudou o facto de passar na rua e as pessoas me conhecerem. Nunca pensei estar numa gala da Federação Internacional, ter duas placas de recorde do mundo. Como o meu treinador diz, naquele dia fez-se justiça por todo o meu trabalho.

Concorda que no desporto vinga mais facilmente quem vem de famílias humildes?

Não. Tem que ver com as pessoas. Os meus pais sempre foram gente muito trabalhadora e de alguma foram deram-me esse ensinamento, que não se fazem omeletas sem ovos. Muitas vezes, se errei, foi pelo excesso de trabalhar. E também por conciliar com a minha vida académica, que não foi fácil. Provavelmente os excessos que cometi e me prejudicaram para os 20 quilómetros, deram-me esta bagagem para os 50. Por isso, tudo compensou.

É curioso que num atletismo tão bipolarizado, as duas principais marchadoras não são nem do Sporting, nem do Benfica.

Tanto eu como a Ana Cabecinha tivemos alguma atenção nas nossas cidades. Agora, para sairmos dos nossos clubes, é mais difícil. Este ano, não tive convites porque fechei a porta. Nas entrevistas disse logo que queria continuar em Rio Maior. Não fazia sentido, ao fim de 25 anos no Clube de Natação de Rio Maior, sair nos últimos anos da minha carreira. Seria muito bom em termos financeiros, nada recebo do meu clube, mas tenho um carinho muito grande da minha cidade. Felizmente, consegui receber um prémio bastante bom em termos monetários, que me permite pagar a minha casa, mas não o fiz por isso.

 

Talento e trabalho em doses iguais

No próximo dia 7 de Janeiro, Porto de Mós vai acolher novamente o Campeonato Nacional dos 35 e dos 50 quilómetros, em marcha atlética. E se há um ano Inês Henriques marcou a prova e a vila com um recorde mundial, este ano irá tentar bater outro recorde, no caso nacional, dos 35 quilómetros. Porquê? A atleta de Rio Maior, cidade onde foi formada – e continua a ser - a esmagadora maioria dos marchadores de sucesso portugueses, terá de poupar as pernas para as duas provas de meia centena de quilómetros previstas para este “ano duro”: a Taça do Mundo de Nações, a 5 de Maio, e, três meses mais tarde, o Campeonato da Europa. O ano de 2017 foi o melhor da carreira da atleta de 37 anos, mas o percurso no atletismo, que já conta com 25 anos, tem outros resultados de relevo. Começou aos 12 anos, seguindo as pisadas de Susana Feitor, e fartou-se de arrebatar títulos nacionais. Como sénior, conta com três presenças em Jogos Olímpicos, oito em Campeonatos do Mundo e quatro em Campeonatos da Europa. Na base de tudo, o labor de Jorge Miguel. “Os atletas com muito talento conseguem, mas os atletas com algum talento e muito trabalho também conseguem. Eu, demonstrei isso.”