Entrevista

Entrevista | Carlos Borrego: "Há secas, não por falta de água, mas porque não sabemos actuar convenientemente"

2 nov 2018 00:00

Professor catedrático e ex-ministro do Ambiente, diz que “não há capacidade técnica que nos valha face ao avanço do mar”.

Maria Anabela Silva

 O último relatório do painel intergovernamental sobre as alterações climáticas é taxativo. São precisas medidas “sem precedentes” para que a temperatura global não ultrapasse 1,5ºC. Ainda é possível conter o aquecimento global nessa meta?

Os dados são claros: as alterações climáticas resultam de um processo natural mas estão a ser aceleradas pela acção do homem. Se diminuirmos este segundo efeito, reduziremos a velocidade com que elas estão a acontecer. O aumento da temperatura média é mais do que evidente. Os dados dos últimos 100 anos mostram que houve um aumento de um grau. Se subir mais de dois graus, há um conjunto de ecossistemas que vão sofrer mudanças. O ser humano até pode conseguir adaptar-se, mas há bichinhos que não aguentam e eles fazem parte da cadeia em que estamos envolvidos. No dia em que ela quebrar num elo, todos sofreremos os efeitos. Não será no imediato, mas passados alguns anos estamos liquidados. Se não conseguirmos diminuir as emissões, principalmente de gases com efeito de estufa, haverá mudanças. Esta questão é crítica. Acredito que somos capazes de diminuir essas emissões. Temos é de o fazer de modo diferente e não com as mesmas tecnologias com que temos actuado.

De que forma o devemos fazer?

O relatório foca-se muito na mitigação e na redução das emissões. Mas há também a vertente da adaptação, sobretudo à frequência dos eventos extremos, como as ondas de calor ou as cheias. Veja-se este exemplo: Em Portugal, tivemos no século XXI um tufão em 2003, outro em 2017 e outro em 2018, enquanto em todo o século XX houve apenas uma dezena. Esta aceleração é mais do que evidente, com fenómenos cada vez mais extremos e mais frequentes. Para enfrentar essa realidade, precisamos de medidas de mitigação, mas muitas de adaptação. Ainda temos condições para reverter a situação. Precisamos da tecnologia e das pessoas. Os cidadãos são parte fundamental neste processo. Somos nós que criamos os problemas, ao não usarmos carros eléctricos ou a bicicleta, ao não olharmos para a eficiência dos sistemas que temos em casa ou ao decidirmos por este ou por aquele procedimento na fábrica. Há uma quantidade enorme de opções que está muito na nossa mão, enquanto indivíduos.

Qual deve ser o foco?

Vou pegar nas cidades, onde vive cerca de 60% da população do mundo, sendo que na Europa o valor ronda os 75%. As cidades são o ponto crítico do processo das alterações climáticas. E como as pessoas vão continuar a querer viver preferencialmente nas urbes, quer os decisores políticos quer os indivíduos, têm de perceber os pontos críticos da cidade onde vivem. Por exemplo, as cidades do litoral, como Aveiro, têm de se preparar para o aumento do nível do mar.

De que forma?

Não é fazendo diques, mas sim arranjando maneira de evitar que, se a água vier em grande quantidade, não seja demasiadamente crítica para as nossas infra-estruturas. Canalizar um rio é o pior que se pode fazer, porque aumenta muito a velocidade da água. Libertem as margens. Deixem os rios alagar-se em espaços não confinados. Ponham-se lá plantas que diminuam a velocidade da água. São soluções deste tipo, que passam pelo planeamento, que devem ser adoptadas. Não podemos pensar que as opção serão todas tecnológicas, que se põe um molhe de cimento e que ele aguenta tudo. Não aguenta. Na adaptação das cidades às alterações climática é também muito importante o aumento da área verde. O Porto está a fazer um trabalho muito interessante, com a plantação de 100 mil árvores em dez anos. Se isso for feito, em 2030 a qualidade do ar estará melhor e as temperaturas no Porto estarão a um nível inferior a outros sítios. O problema é global, mas as soluções têm de ser locais.

Até que ponto fenómenos como a tempestade Leslie, a seca severa que tivemos no ano passado ou o drama dos incêndios são já reflexo das alterações climáticas?

São claramente efeito disso. Neste século encontramos um conjunto alargado de dados que já ultrapassaram os registados anteriormente. Já referi o aumento, em número e em intensidade, dos furacões. Este ano, o Alentejo atingiu temperaturas que nunca tinham sido registadas. Portugal não se vai livrar da influência das alterações climáticas. Estamos a chegar ao extremo, numa perspectiva em que é sempre pior do que era antes. Um dos efeitos do aumento da temperatura é o degelo dos glaciares.

Sabendo que o mar vai avançar em Portugal, devemos proteger ou demolir as construções em zonas de risco?

Construímos em cima da costa porque achávamos que tínhamos capacidade técnica de dominar o mar. Afinal, já percebemos que não há capacidade técnica que nos valha face ao avanço do mar. Temos de assumir que não vamos nunca conseguir mudar o regime em que o mar está. Portanto, a nossa adaptação na costa tem de seguir o que se fazia antigamente, ou seja, evitar os 500 metros críticos junto ao mar. É extremamente difícil convencer as populações de que têm de recuar e deitar as casas abaixo. Vamos mesmo ter de demolir as habitações. Temos de olhar para os estudos - há muitos sobre as áreas de risco na costa -, e avançar em duas frentes: não permitir novas construções nas zonas de risco e retirar quem já lá está, sejam casas de primeira ou de segunda habitação, sendo que, neste último caso, teremos depois de se ver se há ou não direito a indemnização. Nas palestras que faço costumo apresentar um gráfico que mostra o que acontecia na nossa costa se o mar aumentasse um metro até ao final deste século. Se isso acontecesse, Coimbra passava a ter praia. Já vamos a caminho de um aumento de 20 centímetros. Chegar a um metro não será assim tão anormal. Não se trava o avanço do mar com paredões. Temos é de conseguir evitar o degelo, evitando que a temperatura aumente. A meta de 1,5º é para garantir que não chegamos aí.

Não sendo possível jogar em todas as frentes, que áreas devem ser prioritárias nas estratégias de adaptação às alterações climáticas?

Ao nível das cidades, há medidas tão pequenas como criar condições para que a água da chuva não seja, simplesmente, lançada no mar e arranjar maneira de captar e distribuir as chamadas águas cinzentas. Parece uma medida ridícula, mas tem um efeito brutal quando há uma grande chuvada. Primeiro, consegue controlar- -se melhor essa água. Depois, podemos aproveitá-la para prevenir situações de seca. Se calhar, as regiões mais afectadas pela seca estão a 100 quilómetro de outras onde há água a mais. Agarremos nessa água que está a mais e punhamo-la disponível para aqueles que têm menos.

As secas extremas vão ser uma das nossas principais lutas do futuro?

As pessoas têm de perceber que são o principal elemento do processo, usando água com alguma parcimónia. Depois, temos de mudar o paradigma, por exemplo, com o aproveitamento da água da chuva. Isso implica que as habitações tenham rede separativa. Não faz sentido ter uma água de qualidade no autoclismo. As futuras casas e edifícios deviam ter uma rede separada, com um circuito para a água bebível e outro que pode ser alimentado pela água da chuva. O planeta Terra é maioritariamente água (75%). Se temos água, porque andamos com esta história da seca? Andamos porque olhamos para a questão de forma enviesada. Devíamos ter estações de dessalinização na costa, que permitissem o aproveitamento da água do mar, recorrendo a energia renovável para fazer a dessalinização. Ficaria mais barato do que outras soluções que temos adoptado. Não há falta de água. Há secas, não por falta de água, mas porque não sabemos actuar convenientemente. M

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