Que diagnóstico faz da saúde mental dos portugueses neste momento de confinamento?
Na minha opinião e na dos meus colegas, a saúde mental dos portugueses está muito pior. No último trimestre de 2020 e perto do Natal, foi o caos. Quase não conseguia ter tempo para a família, porque saía tardíssimo, inclusivamente, ao sábado. Noto um aumento significativo na sintomatologia ansiosa, no stress - ansiedade e stress são coisas diferentes -, nos ataques de pânico, nos quadros psicossomáticos - enxaquecas, dores de coluna, problemas digestivos, algumas conversões histéricas, ou seja, situações onde o corpo grita por socorro, quando a boca não o faz. Não exteriorizamos emoções e não sublimamos. A sublimação é a nossa capacidade de pegar numa dor ou frustração e transformá-las em acto criativo. Falei nisso, num live que faço às quintas-feiras, às 19 horas, do canal do Facebook do Be the Change, onde colaboro. Esse acto criativo pode ser o nosso trabalho, se ele nos apaixonar... mas há outras formas de sublimação. As mais comuns são o exercício físico e a arte: a fotografia, a literatura, cinema, televisão... ou a música. Quando as pessoas estão tristes, só lhes apetece ouvir coisas que façam chorar. Que ouçam e quanto mais, melhor! Quanto mais exteriorizarmos a tristeza, menos deprimimos. É uma ideia-chave que aprendi com o professor Eduardo Sá. "A tristeza é o melhor antidepressivo do Mundo." Se tivermos a capacidade de nos entristecermos, seremos capazes de nos libertar dela, em vez de a engolir. Nesse live, falei também sobre a "fome emocional" e como usamos alimentos para engolir a tristeza, o stress e a ansiedade, em vez de os exteriorizarmos. As pessoas em confinamento têm menos actividade física e se não conseguem canalizar a raiva, o stress e a tristeza para uma acção que envolva o corpo e a sua utilização, acabam por pensar de mais. Carl Jung, sucessor de Freud, dizia que ‘quem não olha para fora, sonha. Quem olha para dentro, desperta’. Em confinamento, olhamos para dentro e descobrimos que fazê-lo é desconfortável.
Disse que, em Dezembro, houve mais pessoas a procurá-la. Foi um acumular dos meses, desde Março ou foi a proximidade das festas que motivaram isso?
Esse período, por norma, é complicado. Outubro já é propício a quadros depressivos, porque há menos sol, há a mudança da hora, há perturbações afectivas sazonais, há a depressão pós-férias - não é um mito, existe mesmo - e há a aproximação ao Natal, num ano onde acreditávamos que o Ano Novo nos traria alguma esperança. Não é por acaso que uma das classes mais afectadas, em termos de saúde mental, é a trabalhadora. É ela quem mais sofre de ansiedade e de stress, porque está preocupada com a gestão financeira, com a educação dos miúdos, com a telescola, com o teletrabalho... Os miúdos estão mais irrequietos, têm comportamentos mais desafiantes e opositores, porque têm falta de actividade. Têm dificuldade em dormir. Já nas pessoas idosas, há um declínio cognitivo, porque há menos contacto social e perdem capacidades. Este declínio cognitivo não tem apenas a ver com a ausência de estímulo social, mas com outra coisa que fazemos em confinamento: o excesso de consumo de açúcar. Consome-se e depois não o gastamos e provoca crises cognitivas e dificuldades na tomada de decisões, falta de concentração, incapacidade em relaxar e dormir. O açúcar dá-nos um prazer imediato, porque mexe com a dopamina, mas, depois, coloca o organismo em esforço. E um corpo em esforço, não funciona bem e fica deprimido. Para termos uma boa saúde mental temos de ter um bom nível de flexibilidade, de criatividade e de sentido de humor. Entre as pessoas que estão em casa ou que estão a passar por maiores dificuldades, as que aguentam melhor são as que têm um maior nível de criatividade, maior capacidade de resolver problemas e de se adaptar. A ausência de flexibilidade está sempre de mãos dadas com a falta de saúde mental. As pessoas com saúde mental mais frágil são menos flexíveis, têm menos capacidade de ver as coisas de outro ponto de vista e de se colocarem no lugar do outro. Têm um comprometimento menor na empatia e na compaixão – a nossa capacidade de cuidarmos de nós ou de outro ser vivo. A maior parte das terapias são baseadas na compaixão: ‘em que medida posso gostar de mim, se eu quiser cuidar de mim?’.
Cláudia Vieira Vitorino nasceu em Coimbra há 41 anos, cidade-natal de parte da família do pai. A mãe é da Marinha Grande, onde viveu a infância e parte da adolescência. Quando chegou ao 12.º ano rumou a Coimbra, e à Escola Secundária José Falcão.
"Ali, lembro-me das aulas de Psicologia onde escrevia, escrevia, escrevia - e estava habituada a ter boas notas -, fazia trabalhos fantásticos sobre os filmes de Hitchcock, e o professor nunca me dava mais de 12 valores! Depois, cheguei aos exames nacionais e tive uma grande nota. Se tivesse ficado na Marinha Grande, teria sido muito prejudicada nos exames nacionais. Na José Falcão, consegui abrir portas, para entrar em Psicologia, na Universidade de Coimbra, que era o que eu queria."
Cláudia explica que a Psicologia é uma profissão com um pouco de tudo. "Nunca se deve tirar Psicologia 'porque é giro', porque está na moda ou porque se pensa que se aprender mais sobre si próprio e sobre os outros. É uma profissão extremamente difícil. Se não houver paixão, não sobreviveremos e seremos psicólogos profundamente infelizes. No fundo, cuidamos dos outros e o segredo passa por sabermos cuidar de nós mesmos, tendo um bom nível de autoconhecimento, para conseguirmos chegar ao outro. E o outro é como nós."
Por que razão o psicólogo faz a diferença?
“Vygotsky dizia que temos de trabalhar para ajudar a pessoa a evoluir para o seu potencial máximo, sendo que ele difere em cada um de nós. Não é a palavra que cura, é a nossa capacidade de relacionamento com a pessoa com quem estamos a trabalhar. E isso é que faz a diferença.”
Essas pessoas que descreve como mais resilientes ao confinamento têm um perfil semelhante ao dos astronautas ou à tripulação de um submarino, que estão sob pressão e perigo constantes.
Exacto. Essas pessoas cuidam da relação e das pessoas que estão ao seu lado.
As crianças vão transportar para o seu futuro esta “herança pandémica”? Há pais que relatam casos de filhos que são estigmatizados porque tiveram Covid, como antigamente os que tinham piolhos...
A questão de terem Covid não me parece que tenha um impacto profundo. Ainda não contactei com esse tipo de situações, mas há sempre um risco, porque o maior problema da sociedade, seja nas nossas relações sociais, seja nas relações íntimas, é o medo. O medo é o nosso pior inimigo. É dele que, depois, deriva a ansiedade. Temos, naturalmente, medo do desconhecido. Temos tanto acesso à informação, mas somos mal treinados a pensar! Nas crianças em idade pré-escolar, um dos papéis fundamentais é saber pensar. Trabalhei num colégio em Leiria onde aprendi muito sobre a perspectiva formativa Reggio Emilia que diz: ‘envolve- os e eles aprenderão’. Quanto melhor explicarmos às crianças o que está a acontecer, melhor eles compreenderão o que se passa. Mas não se pode encharcá-los em notícias negativas. Isso é péssimo. Temos de os proteger de notícias muito negativas, mas temos de lhes explicar a verdade. As crianças precisam da verdade.
Os pais devem ser uma espécie de filtro?
Exactamente. Os pais devem ser uma espécie de filtro que diga às crianças: 'o que está a acontecer é grave, é uma coisa má, mas há muitas pessoas adultas e responsáveis, que são boas pessoas que fazem tudo para resolver a situação o melhor possível, para que consigamos estar todos bem. Mas, até lá, temos de ter estes cuidados'.
Os adultos também precisam desse filtro.
Quando recebo pessoas que noto que estão num nível de ansiedade potenciado pelo excesso de noticiários que vêem, digo-lhes que só têm autorização para ver as notícias uma vez por dia, porque, se não, têm de se haver comigo! A maior parte de nós, quando saímos de casa para trabalhar, vamos ser heróis. A maior parte das pessoas está fora de casa a resolver problemas, até mesmo os miúdos na escola gerem conflitos, a aprender a brincar, a fazer amizades. Os homens adoram resolver problemas e ser os heróis... a maior parte deles está habituada a resolvêlos fora de casa. As mulheres resolvem coisas em casa e fora dela. Noto que, para eles, este confinamento tem sido particularmente duro, porque em casa têm menos possibilidades de solucionar assuntos e de sentirem fortes e confiantes. Há estudos que demonstram que os homens têm mais vergonha da sensação de fraqueza: 'será que consigo resolver este assunto? Será que sou suficientemente forte ou bom?' Tem também a ver com factores educacionais; o homem adora ser o salvador da situação. As raparigas têm menos vergonha de chorar, vulnerabilizam-se mais e isso é importante nos casais. É por isso que eles resultam; alguém deixase cuidar pela outra pessoa e essa outra pessoa tem gosto em fazê-lo. Mas há também uma troca muito subtil dos papéis nos casais felizes. Esta particularidade
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