Entrevista
Carlo Melo: “Acredito que voltarei a abraçar quem me é muito querido”
10 abr 2020 20:30
O presidente da Associação Novo Olhar II, da Marinha Grande, trabalha há 25 anos no apoio de toxicodependentes, prostitutas e dos mais desfavorecidos da sociedade. Pessoas que, nos tempos que correm, precisam de ainda mais apoio
Neste período de Estado de Emergência, as equipas de rua da Novo Olhar II continuam a dar apoio aos utentes? Estas pessoas não desapareceram apenas porque nos refugiámos dentro dos nossos lares...
É verdade. Nos 14 anos que também levo à frente do Centro Socio-Sanitário Porta Azul, na Marinha Grande, pude ver mudanças de paradigma nesta sociedade de consumos, de pobres e excluídos. Se, no início, nos chegavam prostitutas e toxicodependentes, neste momento, entra o idoso que ganha uma pensão ridícula por mês e que vai lá porque não tem outra maneira de comer um prato decente, entram os sem-abrigo que ocupam casas abandonadas e até entram as trabalhadoras sexuais que estão em apartamentos. O paradigma inicial daquela estrutura, para trabalhar com toxicodependentes e prostitutas, está muito longe do actual. Vão lá doentes mentais... e temos cada vez mais pessoas com duplos diagnósticos, além da patologia tóxica, têm também problemas mentais gravíssimos. Há esquizofrénicos, borderliners ou bipolares... É óbvio que estas pessoas não desaparecem porque foi declarado o Estado de Emergência e até estão mais vulneráveis do que anteriormente. Isto é uma coisa inédita. Ainda hoje fui aos Serviços Farmacêuticos dos Hospitais da Universidade de Coimbra e as técnicas farmacêuticas que lá estão têm pânico e desconhecimento na face. Quando tudo começou, tivemos directrizes para fechar o centro na Marinha Grande, mas não o fizemos. No concelho, a Associação Novo Olhar está a assegurar às segundas e quartas- feiras, das 10 às 13 horas, os serviços de higiene. Às terças e sextas, as equipas de rua, distribuem, no domicílio - alguns destes domicílios são casas abandonadas -, cabazes de alimentos, luvas, toalhetes, desinfectantes, máscaras, material de redução de danos e informação sobre a Covid-19 e medicação aos doentes com VIH e Hepatite B. Estamos a acompanhar 240 pessoas. Temos pessoas que vêm de Alcobaça e de Leiria e nos pedem apoio. Temos 200 utentes na Porta Azul e as equipas de ruas Santana, ajudam mais 200, e a linha SARA - Serviço Anónimo de Rastreio e Aconselhamento, que apoia trabalhadores e trabalhadoras sexuais, está a acompanhar 40 pessoas neste momento. Temos ainda duas linhas telefónicas de apoio, disponíveis 24 horas por dia, para a Porta Azul e equipas de rua Santana.
Os invisíveis da sociedade tornaram-se ainda mais invisíveis? Até agora contavam com apoio de vizinhos e conhecidos, mas estes fecharam-se e mantêm o distanciamento social.
Elas são a face da moeda que a sociedade preferiria não ter. Recordo-me de, há uns anos, falar com um presidente da Câmara da Marinha Grande, devido a uma notícia num jornal, onde falávamos da quantidade de sem-abrigo que havia no concelho e ele ficou indignado. Disse-me: "como é possível haver 40 indivíduos em situação de sem-abrigo na Marinha Grande? Não vejo ninguém quando passo." Respondi-lhe que não via ninguém porque o conceito de sem-abrigo dele, provavelmente, seria muito restrito e ligado aos que dormem com as estrelas por cima. Tive de lhe dizer para ir dar um giro comigo, à noite, para lhe mostrar onde dormem. "Perto da Câmara Municipal, está lá uma casa antiga, depois dos semáforos onde vivem uns seis indivíduos." A invisibilidade destas pessoas é o reverso da medalha do progresso. Ninguém quer ter estas pessoas, nesta pobreza extrema, à porta ou na sua autarquia. Há 45 anos que não vivíamos uma situação destas e as pessoas têm medo! Têm mais quando estamos a falar de quem tem comportamentos de risco, associados às toxicodependências ou falta de limpeza, por viverem na rua. O povo português é solidário, embora a Marinha Grande, por ser uma comunidade de gente trabalhadora, não aceite muito bem as toxicodependência e os rendimentos de reinserção, mas é certo que, na hora da verdade, muitos vão à Novo Olhar deixar alimentos, produtos de higiene e roupa, e ajudam os sem-abrigo, especialmente aos fins-de- semana, pois nós não damos apoio nesses dias... mas essas pessoas estão assustadas. A solidariedade, agora, é para si e para os seus. Não diria que os invisíveis estão invisíveis. Estão mais visíveis, mas menos apoiados.
A Covid-19 é um vírus que faz engenharia social? Ataca os idosos, os doentes, os excluídos. Limpa a sociedade dos menos válidos?
Já pensei nisso. Trabalho há quase 20 anos com reclusos e ainda é uma agonia sentir as portas a fechar e as chaves a rodar nas fechaduras. Hoje, estamos fechados nas nossas casas, mas muita gente não terá casa para estar confinado ou, tendo-a, ela não será das melhores para se estar fechado este tempo todo. De facto, está a haver uma limpeza na sociedade. O ser humano abusou dos consumos que fez, abusou dos recursos, abusou do planeta, abusou dos mais fracos e isto criou um excedente humano que é mais vulnerável ao coronavírus. Sempre que vejo notícias sobre a Índia, aflijo-me. Aquilo é uma bomba relógio. O vírus meteu-nos perante a urgência de pensar todo o nosso comportamento ao cimo da Terra. O Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD) e a Comissão Nacional de Luta Contra a Sida, há 20 anos, que só querem saber de dados. Só querem dados, dados, dados. Número, números. Se não alcançarmos os números, no ano seguinte, cortam-nos o orçamento. Mas se conseguirmos fazer com cinco, também conseguirmos fazer com quatro. Há uma enorme falta de respeito para connosco, os técnicos, que estamos meses sem receber, porque a DGS está em articulação com a Santa Casa da Misericórdia e são os Jogos da Santa Casa que pagam alguns destes projectos. Como em Janeiro, fazem a avaliação do ano transacto, nós não recebemos. O mesmo se passa com os utentes; se não tivermos dinheiro para comprar leite, não o podemos comprar. Temos de reinventar muitas coisas todos os dias mas, sem ovos, não se fazem omeletas. Em cima da mesa, está sempre uma questão economicista. Estamos a lidar com seres humanos que sofrem!
Mesmo com tantos avisos, ainda há, no público quem corra riscos, desvalorizando o impacto que pode ter na vida dos outros. Como se explica isto?
Vivemos numa sociedade tão informada e desinformada ao mesmo tempo. Nunca houve um momento com tanta informação, contra-informação e falsas notícias. Temos de ter muita cabeça e bom-senso para fazer uma triagem naquilo que ouvimos e lemos. Nos grupos de Whatsapp e Messenger estamos a receber porcarias a toda a hora e precisamos de discernimento para escolher o que realmente interessa. Os jovens, por exemplo, têm um acesso privilegiado à informação pela internet e custa-me que os miúdos ponham as suas vidas em risco após saberem todas as indicações dadas sobre a necessidade distanciamento, sobre o perigo de contágio. Perdoo mais facilmente aos meus utentes, que têm a cabeça muito ‘frita’, andarem a passar charros e garrafas, do que aos jovens que o fazem. É de uma irresponsabilidade e infantilidade tremendas. É falta de referências, é falta de tudo.
Da escola dos “betinhos” para as ruas frias
Fará 45 anos a 1 de Junho, Dia Mundial da Criança, numa data que sempre lhe agradou. Carlo Melo nasceu e cresceu em Coimbra, e estudou na Escola Secundária Dona Maria, actualmente classificada como um dos estabelecimentos públicos que atinge melhores resultados a nível nacional. "Era a escola dos 'betinhos' e eu sempre fui um bocadinho rebelde”, brinca. Depois disso, licenciou-se em Serviço Social, no Instituto Superior Bissaya-Barreto. Mais tarde, fez uma pós- -graduação em Economia Social, na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Em 1994, recebeu um convite de João Guerra, um dos coordenadores do projecto Stop SIDA - Centro Laura Aires. "Eram equipas de rua, que percorriam as zonas de tráfico e consumo de drogas de Coimbra. Devido à minha ‘rebeldia’, o João acreditava que eu tinha potencial para ajudar aquelas pessoas, fazendo primeiros contactos, a trocar seringas ou a distribuir preservativos. E lá fui eu, com o João Guerra, a Joana Amaral Dias e o João Rodrigues. Eles estiveram na base da construção da Associação Novo Olhar, em Coimbra, em 1994." Carlo sentiu que podia ajudar os outros e tomou o gosto pela missão. Em 2000, foi formada a Associação Novo Olhar Leiria - Marinha Grande. "Desbravámos as ruas de Leiria; as zonas perto da Rodoviária, de mochila às costas com kits de seringas e preservativos", recorda. Ainda passou com idosos, reclusos e "adictos em abstinência". "Não gosto da expressão ex-toxicodependentes." Foi eleito presidente da Novo Olhar II há três anos. É também coordenador do Centro Socio-Sanitário Porta Azul.
Na edição da semana passada, o JORNAL DE LEIRIA dava conta de que há prostitutas que continuam a trabalhar e que não usam protecção.
Estamos extremamente preocupados. Existe prostituição de vários tipos: a de rua e estrada onde a prostituta faz algum dinheiro, vai drogar-se e volta para a rua. Fá-lo pela droga. Temos a prostituição de luxo... temos todos os tipos de prostituição, da que vai dos 20 aos 30 euros na rua, a valores superiores numa casa, depende dos serviços que as meninas ou os meninos prestam. Mas a todos é transversal uma coisa: se não trabalharem, não há dinheiro. E ainda há o proxeneta, que recebe parte do dinheiro e que paga o apartamento, a comida, a água e luz. Se a fonte de rendimento não trabalhar, ele terá de reinventar o trabalho. Esses indivíduos sem escrúpulos, que tratam estas prostitutas, que não têm rede de apoio, que são estrangeiras, especialmente brasileiras, romenas e portuguesas, como carne para canhão, voltam-se para outro tipo de clientes; alcoolizados, com problemas psicológicos, que querem sexo sem preservativo, porque acham que incomoda a erecção e a virilidade, e, desde sempre, dão mais dinheiro por sexo sem protecção. Na associação, temos feito um trabalho contínuo, a dizer às utentes que a vida delas vale mais do que 20 euros. Elas respondem que não têm dinheiro. Temos levado cabazes de alimentação a algumas porque não já têm comida. Tentamos travar isto com informação, com apoio e apelos ao bom-senso. Mas elas estão em casa com os proxenetas e são obrigadas a prostituírem-se sem protecção. Isto vai provocar um retrocesso no trabalho de décadas no combate à SIDA e às hepatites.
A manter-se o panorama actual, esses problemas de falta de trabalho e de comida na mesa, voltarão ao quotidiano dos portugueses. Prevê tempos especialmente difíceis?
Estamos numa situação que vai ter repercussões dantescas na economia, na família, no bem-estar e na sociedade. Prevejo uma série de mudanças extremamente bruscas. O desemprego vai explodir. Há empresas que já não conseguem pagar ordenados. Ninguém sabe quando as coisas voltarão à normalidade. Haverá pessoas em situações delicadas a procurar-nos. Quando a crise da Covid-19 passar, muitos estarão num desespero tremendo, com uma mão à frente e outra atrás.
É possível voltar ao “normal”, com livre circulação de pessoas e de bens, com a vida como era dantes?
A espécie humana tem uma enorme capacidade de dar a volta às coisas. Em África e no Médio Oriente as coisas são, eram e serão ainda mais catastróficas, mas nós já passámos pela I Guerra Mundial, pela II Guerra Mundial e estamos a viver a III Guerra Mundial. Apesar de estarmos entrincheirados em casa, é um conflito invisível e sem trincheiras e iremos dar a volta a esta pandemia. Não gosto da palavra “normalidade”, mas acredito que voltarei a abraçar quem me é querido, embora agora não o possa fazer. Há três semanas que não abraço a minha mãe. A minha tia, hoje, fez anos e ela chorou quando fizemos uma vídeo-chamada... sei que as voltarei a abraçar. Sei que as relações vão mudar e que os nossos comportamentos também, mas voltarei a abraçar